Imigração

Recomeço além das fronteiras

Brasil tem sido destino de milhares de imigrantes e refugiados nos últimos anos

Rochane Carvalho
Olhares Plurais

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Foto: Freepik

Desde as primeiras décadas do século XIX, o Brasil é visto como uma terra repleta de oportunidades de emprego e de chances para ter uma vida melhor. Isso teve início após o sancionamento da Lei Euzébio de Queiroz em 1850, um dos primeiros passos para a abolição da escravidão no Brasil. Nela dizia que a entrada de novos escravos no país era proibida. Os fazendeiros, não querendo pagar salários para ex-escravos, precisavam de mão de obra estrangeira. Foi assim que italianos, alemães entre outros europeus começaram a vir para cá. Essas expectativas em relação ao nosso país não mudaram com o passar dos anos.

Farah Romuls, haitiana de 30 anos, vive em Porto Alegre há 10 meses e diz que sempre ouviu falar do Brasil como sendo um país “receptivo e festeiro”, por isso, quando decidiu sair do Haiti, escolheu viver aqui. Esse sentimento é transmitido por uma onda de pessoas que carregam consigo a esperança de prosperar em novos ares.

As crises econômicas, sociais e políticas de países subdesenvolvidos têm feito com que os números de imigrantes e de refugiados tenham crescido consideravelmente nos últimos anos no nosso país. Isso alterou o perfil dessas pessoas, que antes eram em sua maioria europeus e asiáticos. E que agora dão lugar a uma mescla muito maior de nacionalidades, como africanos e caribenhos, presentes no cotidiano das cidades brasileiras. De acordo com dados divulgados pelo Departamento de Migração da Polícia Federal, no Brasil existem 2,97 milhões de imigrantes.

Outro meio possível de se fazer o trânsito das fronteiras é pedindo refúgio. O Ministério da Justiça divulgou um relatório com números sobre refugiados no Brasil, o “Refúgio em Números — 3ª Edição”, que indica que, no final de 2016, cerca de 65,6 milhões de pessoas foram obrigadas a deixar seus locais de origem por diversos conflitos. Perto de 10.145 mil já são reconhecidas como refugiadas, e 86.007 esperam o resultado da solicitação de reconhecimento de refúgio. Acumulasse assim um total de 96.152 mil que estão no Brasil ou querem vir para cá.

Conforme o discurso do Presidente da República, Michel Temer na ONU, em 19 de setembro de 2017, a Lei de Refúgio brasileira é considerada uma das mais modernas do mundo, o que estimula esse número tão expressivo.

Convívio Diário

Os brasileiros acompanharam os tantos conflitos, divulgados em todos os jornais, que se estabeleceram entre os moradores da cidade de Pacaraima em Roraima e os venezuelanos que lá chegaram fugidos da crise humanitária que assola seu país. Estaria aí a contradição de que o povo é receptivo? Existem sempre exemplos bons e negativos quanto ao convívio social dessas pessoas. Para Omar Faye, senegalês de 33 anos e que trabalha no Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), a relação com os colegas de trabalho é bastante saudável, e eles concordam. “Eles são super gente boa, é legal trabalhar com eles”, fala João Silva da Silva, motorista do caminhão de coleta seletiva que trabalha aproximadamente há dois anos com imigrantes. Alcindo Evelásio da Rosa, que também trabalha no DMLU, diz que muitas vezes o pessoal que vem de fora é mais esforçado do que os daqui.

Os casos de xenofobia e racismo não são raridade. Nos quatro anos que está em Porto Alegre, Omar já passou por alguns casos de preconceito. “Uma vez me disseram que meu povo só queria roubar o dinheiro do Brasil, não é verdade. Eu fiquei muito triste com isso”, conta ele.

A língua é um dos fatores que poderiam ser considerados uma barreira para a interação dos migrantes, mas para José Gonçalves Silva, fiscal da Prefeitura de Porto Alegre, só é preciso ter paciência. “Tem que falar com calma e pedir para eles repetirem várias vezes, mas no final dá tudo certo e a gente se entende”, explica. A haitiana Farah atribui sua facilidade de entender o português ao tempo que passou morando com uma prima na República Dominicana, país da América Central que tem como idioma oficial o castelhano. “Morar lá ajudou a me comunicar com o pessoal aqui, é bem parecido”, diz.

Imigrantes e refugiados: quais as diferenças legais dos dois termos ?

Existe algumas diferenças entre ser refugiado ou imigrante em um país, começando pelos trâmites legais. Uma das maiores é o fato de que o imigrante precisa aguardar pela autorização no seu país para só depois fazer a viagem, e o refugiado viaja primeiro e depois, ao chegar no seu destino, procurar as autoridades locais.

Laura Sartoretto, advogada e integrante do Grupo de Assessoria e Imigrantes e Refugiados (GAIRE), explica que para regularizar uma pessoa que solicita refúgio é necessário fazer a solicitação na Polícia Federal. “Com base em um fundado temor de perseguição por raça, nacionalidade, religião, grupo social ou opinião política, ou por grave e generalizada violação de direitos humanos.” Segundo ela, esse pedido deve ser encaminhado para o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE). Em caso de negação, há possibilidade de solicitar recurso ao Ministério da Justiça.

Já o imigrante precisa se enquadrar em uma das formas de regularização ordinárias previstas na Lei n.13.443/17 (Nova Lei de Migrações Brasileira). Deve solicitar um visto para entrar no país e, se quiser permanecer por mais tempo, solicitar residência permanente através de pedido feito na Polícia Federal quando já estiver no Brasil. Laura conta que, só em 2018, já foram feitos mais de 150 atendimentos a imigrantes de 26 nacionalidades diferentes. “No último ano, lidamos, sobretudo, com regulamentação migratória, acesso à educação e à assistência social e com demandas jurídicas e psicossociais de diversas ordens”, explica, ao falar sobre as demandas do grupo vinculado ao Serviço de Assessoria Jurídica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Saudade: sentimento unânime

Em 2017, segundo o Comitê Nacional de Refugiados, 71% dos indivíduos reconhecidos no Brasil eram homens que saíram de seus próprios países deixando toda a família para trás. Eles precisam lidar diariamente com a saudade de casa. “Eu era professor de escola no Haiti, mas não tinha mais emprego em lugar nenhum. Eu tive que deixar minha mãe, meus irmãos e meu filho lá para poder ajudar eles”, diz Bevel Charles, de 36 anos, gari em Porto Alegre. Depois de dois anos no país, Bevel pretende trazer todos para morarem aqui com ele, mas primeiro precisa esperar para conseguir moradia permanente e só depois fazer o pedido ao Instituto Reunião Familiar, órgão que permite ao refugiado viver em unidade familiar.

Novos habitantes no Rio Grande do Sul

O sul do país recebe uma grande demanda de migrantes, já que é uma das regiões que mais emprega. Mais de 50 mil já estão instalados no Rio Grande do Sul. Haitianos e senegaleses lideram o ranking. No último mês, a capital e outras três cidades da Região Metropolitana receberam mais migrantes, desta vez venezuelanos. A grande quantidade de voluntários envolvidos nessa recepção demonstra o sentimento de acolhimento de pelo menos uma parcela dos gaúchos. As cidades da serra com seu grande número de indústrias sempre atraíram pessoas de todos os cantos. O salário é também um fator de escolha da cidade, já que em alguns casos é possível ganhar até seis vezes mais do que em seu país de origem, indica o Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra).

É impossível ignorar tantas vidas lutando por apenas uma palavra que é definida no dicionário, como um atributo moral que incita respeito: dignidade.

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