Cultura

Samba de Terça e a disputa pelo espaço público no Brooklyn

Grupo de samba organiza evento todas as terças no Viaduto Imperatriz Leopoldina , porém esbarra em problemas de logística e disputas com moradores e comerciantes

Matheus Riskalla
Olhares Plurais

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São 21h. O pessoal continua chegando e se amontoando ao redor da mesa única em frente ao viaduto. Um grupo com instrumentos de corda e percussão toca e canta clássicos do samba e da MPB. Os que estão pé dançam e juntam-se ao coro entoando músicas como “Corra e Olhe o Céu”, de Cartola, e “O bêbado e a equilibrista”, imortalizada na voz de Elis Regina. Um pouco mais afastados, vendedores ambulantes vendem latas e competem com uma banca da cervejaria Nazca, que vende cerveja artesanal. O evento começou às 19h e por volta das 23h30min começa a se esvaziar, assim que acaba o samba. Não muito tempo depois, a multidão que ocupava a frente do Viaduto Imperatriz Leopoldina, vulgo “Brooklyn”, está dispersa e o local vazio novamente. Essa cena é recorrente na avenida João Pessoa, em Porto Alegre, independentemente de chuva, desde o início deste ano, quando o grupo Encruzilhada do Samba passou a organizar regularmente o Samba de Terça.

Começaram numa terça-feira de 2017. Na época, tocavam na escadaria da av.Borges de Medeiros, junto ao bar Tutti Giorni. A escolha do dia foi feita por nele ocorrerem menos atividades culturais na cidade. A banda acabou se transferindo para o Brooklyn, pois a escadaria começou a ficar pequena para o grande público que comparecia, formado por centenas de pessoas. O local, que era utilizado desde a década de 90 por skatistas, nos últimos anos vêm sendo usado para diversos tipos de eventos culturais, tal qual o Largo Zumbi dos Palmares e o Largo Glênio Peres. Além do Samba do Brooklyn, ocorrem também batalhas de rap na sexta-feira. Com menos frequência, o local é sede da “Cúmbia de Rua”, que é uma festa de ritmos latinos que costuma acontecer na rua, e do “Slam Chamego”, que é um exemplo das competições de poesia bastante populares na periferia.

Diego Silva, um dos músicos da Encruzilhada, explica que o sucesso de público deve-se tanto a diversidade do grupo, que tem de diferentes idades, gêneros, raças e orientações sexuais, quanto pelo fato de a apresentação acontecer a céu aberto, tornando-a acessível a pessoas de diferentes poderes aquisitivos. A localização central do Brooklyn, entre Cidade Baixa, Bonfim e Centro, também influencia, além do repertório da banda, que mistura sambas clássicos e modernos. O sambista conta que entre os objetivos do seu samba, está a integração social dos diferentes grupos, num “convívio harmônico e festivo”.

“Historicamente o samba tem se prestado também a discutir a sociedade através de suas letras. Nosso repertório é selecionado para que estas canções tenham espaço num ambiente de descontração em que o público está mais permeável”, conta Diego.

O evento envolve também organização e gastos com banheiros químicos, transporte de equipamento e limpeza do local pós-festa. Para ajudar nesses gastos, a cervejaria Nazca repassa uma pequena parte dos seus lucros para o grupo, em parceria, além de a banda receber doações do público: “A maior dificuldade é a falta de consciência do público, que, aparentemente, acredita que o evento brota naturalmente ali. Todos acham natural pagar ingresso para ir a shows, mas é difícil ensinar as pessoas a colaborarem no chapéu”, explica o músico, referindo-se ao tradicional ato dos artistas de rua de receber contribuições dentro de um chapéu . Ele reclama também da concorrência dos vendedores ambulantes, que disputam com a cervejaria e assim diminuem o orçamento da banda.

Samba de Terça no Booklyn. (Foto: Mariana Carlesso)

A disputa pelo espaço público

Soma-se a essas dificuldades logísticas uma que pode significar a extinção do evento: a pressão de alguns moradores e comerciantes pelo fim dele. Após uma petição reclamando da poluição sonora, que foi rebatida por outra petição de apoiadores dos eventos do Brooklyn, no dia 30 de abril foi estabelecido pela promotoria de Meio Ambiente do Ministério Público-RS (MP-RS) um Inquérito Civil a respeito das atividades produzidas no viaduto. A promotoria, junto ao gabinete de assessoramento técnico, foi à residência de alguns reclamantes e constatou elevados níveis de poluição sonora, superiores aos permitidos na legislação municipal e nas resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Foi constatado pela inspeção da promotoria que o principal foco de ruídos no local era o Espaço Cultural Lechiguana, bar que funcionava em frente ao viaduto e fornecia energia elétrica aos eventos que aconteciam ali. Ele acabou sendo fechado há cinco meses, transferindo-se para um endereço na rua Sarmento Leite.

Ana Marchezan, promotora de Meio Ambiente do MP-RS, explica que o papel da promotoria no caso é fazer a mediação entre os direitos legítimos dos que querem praticar atividades culturais e o direito também legítimo dos moradores que querem sossego. “O local acabou se consolidando como um espaço de eventos de cunho cultural na cidade”, diz Ana. “Mas os moradores também precisam ter respeitado o direito ao sossego, que é um direito constitucional ligado à qualidade de vida”. A promotora diz que está em tratativas com a Encruzilhada do Samba para tentar manter o evento acontecendo, porém em horário mais adequado. “Estamos tentando evitar que qualquer tipo de ação judicial tenha de ser promovida, a ideia é a de que o consenso entre os produtores culturais e os moradores seja estabelecido através da mediação do Ministério público”. Ela fala também que ações paralelas estão sendo feitas contra os vendedores ambulantes e contra o comércio de drogas na região, para melhorar a qualidade de vida dos moradores.

Em meio a essa disputa pelo espaço público, o pessoal segue sambando, apesar das sanções. O grupo Encruzilhada do Samba coloca-se como resistência cultural à elitização da cultura e os moradores locais dividem-se entre os que são a favor e os que são contra. O Ministério Público tenta agir como mediador do consenso, segundo Ana Marchezan. E esse episódio se configura como mais um exemplo de disputa pelo espaço público em Porto Alegre.

Nota:

Posteriormente à realização desta reportagem, os impasses com os moradores fizeram a Encruzilhada do Samba optar por sair do Brooklyn e realizar o evento alternando entre a Praça Júlio Mesquita e a Praça Garibaldi, um dia em cada uma.

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