Como ler poesia & outras provocações

Fernando Alves Medeiros
Primeiras Lições de Poesia
4 min readAug 18, 2019

Recentemente, num evento de poesia, foi perguntado aos autores convidados: “Quais nomes fazem a cabeça de vocês?”. As respostas, embora demonstrassem diversidade, repetiam o mesmo padrão que eu já andava percebendo em outros rolês similares. Nomes que formavam basicamente três grupos bem destacados: 1) grandes do cânone, da tradição; 2) contemporâneos estabelecidos e 3) “celebridades” em ascensão, onipresentes em eventos, orelhas de livros e saraus.

Até aí, nada demais. No entanto, achei curioso que, desses três grupos, pelo menos os dois primeiros são supridos com fartura e quase que com exclusividade pela gigante Companhia das Letras. Achei curioso também que, dos parcos nomes citados do terceiro grupo, os mesmos sempre se sobressaíssem e se repetissem. Talvez, pensei, a “cena poética” em São Paulo dependa de figuras-chave que se levantam e queiram conduzir o movimento, que nem na música underground.

Personagem de Tintin, criação do belga Hergé

É claro que a isso se podem somar alguns fatores, como serem características de um fenômeno local e recente. Não nego. Mas reconheço que apesar ou por causa disso tudo, ali foi plantada a sementinha para estes apontamentos soltos à guisa de ensaio: a aparente regularidade na “dieta literária” de nossos poetas.

Interessante paradoxo. Porque a poesia brasileira, não só a contemporânea, é plural e multifacetada. E, por isso mesmo, qualquer esforço de ou resumi-la ou rastrear suas “linhas de força” pareça tarefa vã e insana, como tentar secar a laje com um rodo, sob a tempestade.

Se você passear despreocupado e de mãos nos bolsos entre as estantes de poesia no Centro Cultural São Paulo, na biblioteca Mário de Andrade ou na biblioteca temática Alceu Amoroso Lima, irá se espantar com a quantidade. Desde um Oswald de páginas puídas e engorduradas até um Onestaldo de Pennafort praticamente intocado. E olha que a parte que diz respeito à “novíssima geração” ainda é ridícula de tão incipiente. Sem contar os nomes que se perderam, livros destruídos pela ação do tempo, pela distração dos usuários.

E a poesia, mais do que isso, é um universo ainda carente de catalogação. Embora imenso, ainda assim vemos o recorte do recorte. A banda de variação é gigantesca: desde o acadêmico que representa tudo o que é velho até o jovem sorridente que na estação de Vila Matilde me dá um abraço, recita um verso e arremata: “Me segue lá no Instagram”.

Por que lemos o que lemos? Quais são os mecanismos que nos empurram a determinados livros e poetas e nos afastam de tantos, tantos outros? Por que vivemos numa espécie de atmosfera cuja constituição básica de referências, embora mude sempre, parece irradiar e reverberar em tantas pessoas de modo mais ou menos uniforme e coeso e espontâneo? Afinal, o que é o gosto, o que é o sucesso?

Faço estas perguntas porque no fundo, no fundo, questiono se há uma liberdade de escolha — num sentido bem sartriano — em lermos e gostarmos do que lemos e gostamos. Imersos nesse caldo cultural, nossa mão apenas toca nas obras que estão ao nosso alcance, e ouvimos as vozes que gritam como um “ruído de fundo” impertinente nesse cenário todo, e os nomes que são soprados ao ouvido com a graça e a autoridade das instituições. Como se a poesia brasileira contemporânea, na boca dessa galerinha, estivesse presa em um limbo entre a Nova Brasil, Transcontinental e Alpha FM.

E nem precisa ir muito longe. Vá até sua estante. Pegue um livro de algum poeta pouco expressivo. Talvez haja por epígrafe Clarice ou Drummond, Camões ou Pessoa, Orides ou Adília Lopes, Ana Cristina Cesar ou Herberto Helder. A orelha, então, nem se fala. A tradição (ou a moda?) talvez seja isso, a circularidade viciosa e inescapável de nomes, temas e ideias. Ou será por que o prestígio e a sofisticação se transmite quando orbitamos estrelas da unanimidade: é sempre melhor citar Bandeira que o Araújo Jorge?

Isso me faz lembrar de um grande amigo, bibliófilo de mão cheia, que me aconselha com frequência: “Leia os clássicos”. E ele continua dizendo que ler os contemporâneos é como “mascar chicletes”. E tem amigos poetas, em início de carreira, que repetem o mantra de joelhos. Não se veem como fazedores dessa tal de literatura contemporânea. Não deixa de ser um caso curioso: o sujeito quer leitores que corram riscos, riscos esses que ele, como leitor, sempre se esquivou.

Ler é experiência. É óbvio que, por mais voraz que seja o leitor, o seu raio de ação é limitadíssimo. “A vida é breve, a arte é longa”, já dizia o antigo provérbio. Qualquer pessoa que tem algum amor pelos livros já se conformou com a ideia: é impossível ler TODOS os livros importantes. Assim, toda leitura é um recorte provisório e tosco, mesmo quando segue implacavelmente algum propósito ou método. Os livros são como as baratas: para cada livro lido, existe uma infinidade de livros ocultos tão ou mais interessantes. Cada um evoca um universo.

E esse trajeto é acidentado e passional. Por afinidades, por indicação, por descobertas. E (por que não?) por retornos. Talvez os livros vibrem na mesma frequência que as amizades e os relacionamentos. Uns para momentos, outros para a vida inteira.

Como ler poesia, então? Sou péssimo para dar conselhos. Mas se fosse para oferecer algum, eu diria para ler de tudo, sem filtro. Embora, particularmente, me incomoda percorrer o caminho das águas: escoar por essas referências que se repetem ad aeternum. Para mim, leitura é descoberta. É se deixar surpreender. Vamos ler mais a “poesia desconhecida” da nossa literatura.

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