A Gente Se Vê Ontem (2019) | Os riscos da viagem temporal

Roberto Honorato
Primeiro Contato
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5 min readMay 18, 2019

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Mais uma produção de Spike Lee chega na Netflix!

A Gente Se Vê Ontem (See You Yesterday, no original) foi lançado na Netflix no dia 17 de Maio. A primeira coisa que chamou a minha atenção é o nome de Spike Lee atrelado a produção do longa, principalmente agora que ele parece estar voltando à forma e se envolvendo em projetos cada vez mais interessantes. Como já deu pra notar pela presença de Lee, outra coisa que fez com que este filme se destacasse é o elenco, formado majoritariamente por negros e latinos, mas o mais intrigante nesta obra é a decisão do diretor Stefon Bristol em usar elementos de ficção científica para abordar o cotidiano dessas comunidades. E que gênero melhor que esse para debater um tópico relevante de maneira única?

Esse é o primeiro longa de Bristol, que tem alguns curtas no currículo e esteve envolvido nas filmagens de Infiltrado na Klan, onde provavelmente conheceu Spike Lee. A Gente Se Vê Ontem é baseado em um de seus curtas de mesmo nome, trazendo de volta a maior parte do elenco para a nova versão. Eden Duncan-Smith e Dante Crichlow interpretam CJ e Sebastian, respectivamente. Os dois amigos planejam entregar o melhor projeto que qualquer feira de ciências já viu, uma máquina do tempo. Eles fazem vários testes mas não desistem da ideia, até que conseguem, mas como é esperado de qualquer narrativa envolvendo viagem temporal, tudo está fora de nosso controle, e o irmão de CJ, Calvin (Astro), acaba baleado por um crime que não cometeu.

Esse é um filme carregados de temas pertinentes ao diretor e sua comunidade, tendo a brutalidade policial como principal objeto de análise. Mas ainda que envolva críticas sociais e um dilema moral por parte dos seus protagonistas, seguimos com um tom leve, que lembra um pouco a sensação de estar assistindo um filme adolescente da Sessão da Tarde (e não leve isso como uma coisa negativa, porque exemplos como Curtindo a Vida Adoidado entram nessa categoria). Esse é o caminho mais confortável para o público, principalmente considerando que estamos vendo tudo pelo ponto de vista de dois jovens apaixonados por ciência. É uma benção, mas também uma maldição, já que Bristol tem um problema para balancear o drama e a comédia, tendo um tom inconsistente que alterna entre diversão brega e drama sem muito peso. Podemos ver a abordagem dos temas desse filme em outro drama adolescente racial recente, O Ódio que Você Semeia (2018, de George Tillman Jr.), mas com mais consistência em manter sua proposta inicial. A produção de Bristol não perde seu brilho, mas pode cair em território brega facilmente (e olha que eu adoro brega, mas não é para todos).

Os elementos de ficção científica ficam em segundo plano, mesmo que sirvam para impulsionar a trama. Isso não é um problema, já que o gênero abre as portas para incontáveis interpretações e é uma das melhores opções quando um roteiro precisa de uma alegoria construtiva. Aqui temos viagem no tempo e efeito borboleta para mostrar como a violência contra a comunidade negra não é uma casualidade, envolve uma mentalidade preconceituosa impregnada na sociedade. O que acontece com CJ não é ficção, é a maior pura realidade, e continua acontecendo, não importa o lugar.

Mas como estamos falando de sci-fi, e é uma produção para um público mais jovem, há várias referências à cultura pop. Em entrevista, Bristol costuma dizer que um dos seus filmes favoritos é De Volta Para o Futuro, o que fica evidente nas menções ao clássico de Robert Zemeckis. Em certo ponto, o próprio Michael J. Fox (que interpretou Marty McFly na trilogia) faz uma ponta como o professor de CJ. Ele até reprisa uma fala de seu parceiro de aventuras, Dr. Brown, proferindo um “Great Scott!”. Na mesma cena, ele pode ser visto lendo o livro Kindred: Laços de Sangue, de Octavia E. Butler (uma obra indispensável para qualquer leitor de ficção científica e que foi muito importante para a literatura negra).

Michael J. Fox

O longa tem muita coisa boa, mas também tem seus tropeços, principalmente na construção da protagonista. Eden Duncan-Smith e Dante Crichlow tem uma ótima química (sem trocadilho — afinal, eles estão falando sobre física), formando a dupla principal. Eles tem boas tiradas, diálogos e interações naturais, mas quando é necessário que Smith carregue a trama em suas costas, sendo a verdadeira protagonista do longa, é onde o roteiro mostra sua fraqueza. CJ passa o filme perdendo família e amigos, mas sua teimosia é incessante. Isso poderia ser explorado como uma falha de caráter, contribuindo para uma dura evolução, porém necessária. Infelizmente, isso não acontece. Terminamos como começamos, sem grandes mudanças ou lições da parte de CJ. O único caso de crescimento considerável é Calvin, a primeira vítima das viagens temporais da dupla, que lida com a tragédia iminente e acaba sendo o personagem mais interessante do filme.

A Gente Se Vê Ontem traz debates pertinentes, mas tem dificuldade em executar seus dilemas morais. Talvez a presença de Spike Lee na produção tenha colaborado para isso, incluindo o final em aberto. Ele não procura saídas fáceis para suas histórias, mas elas geralmente envolvem uma abordagem bem mais adulta e intensa do assunto, o que não temos aqui, e é por isso que a protagonista termina como um destaque negativo. Ainda assim, sua relação com Sebastian e o engraçado Eduardo (Johnathan Nieves), um amigo apaixonado por ela, é um dos pontos altos da obra, e a pegada mais leve ajuda na experiência.

O filme está disponível na Netflix desde o dia 17 de Maio de 2019.

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Roberto Honorato
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"Mad Mastermind". Eu gosto de misturar palavras e ver no que dá. Escrevo sobre ficção científica para o Primeiro Contato e cinema para o Rima Narrativa 📼