A importância do debate sobre gênero em “A Mão Esquerda da Escuridão”
Encontrando a essência humana em personagens complexos de outro mundo.
Qual a função da ficção científica?
Você pode debater que o necessário para uma história ser considerada sci-fi é ter uma ambientação futurista e servir como entretenimento, ter muita ação e situações criativas. Não deixa de ser verdade, mas é uma definição limitada para uma forma literária tão rica em elementos e tremendo potencial narrativo. Neste debate, não faltam vozes levantando várias opiniões sobre a função da ficção científica.
Entre tantas possibilidades, a que mais me intriga é o uso da liberdade poética quando falamos sobre o futuro e suas diversas representações. Alguns se aproveitam da ferramenta para especular ou alertar sobre o que está por vir, mas nem sempre estamos falando literalmente sobre o futuro. Recentemente, li pela primeira vez o livro “A Mão Esquerda da Escuridão”, de Ursula K Le Guin, lançado originalmente em 1969 (a versão que li foi a edição da editora Aleph, de 2015), e me deparo com a seguinte citação, logo na introdução da obra:
A Ficção científica não prevê; descreve […] Previsões são o trabalho de profetas, videntes e futurólogos. Não são o trabalho de romancistas. O trabalho do romancista é mentir.
De acordo com Le Guin, o autor de uma obra sci-fi não está aqui para te dizer que tipo de carro voador estaremos usando no futuro ou o quão bizarra será a nossa vestimenta, mas sim refletir sobre seu contexto social e político de uma forma diferente, muitas vezes através de alusões e metáforas bem elaboradas.
A premiada série televisiva The Handmaid´s Tale utiliza um futuro distópico onde as mulheres perderam a maior parte de seus direitos e servem apenas para o prazer masculino. Essa premissa sozinha já poderia ser considerada uma boa ficção científica, mas a onda cada vez maior de notícias sobre a violência contra a mulher faz com que esta não seja apenas uma proposta narrativa, mas uma crítica feroz sobre a condição humana.
Na série temos um regime totalitário, com enorme poder baseado em medo, e quando você lembra de todas as obras do gênero em que um sistema político como este é um elemento saliente da trama, como em O Homem do Castelo Alto ou 1984, percebe que elas estiveram o tempo todo refletindo o momento que seu país estava vivendo. As principais obras de Kurt Vonnegut (Cama de Gato, Matadouro 5), por exemplo, são um “relato” sobre o que o autor passou em meio aos tempos sombrios da segunda guerra, só que ele nunca trata isso como uma autobiografia, está mais para uma terapia onde o cliente não usa seu nome verdadeiro e todos os traumas vividos são recriados de forma pouco similar. Acredito que essa seja uma analogia menos complicada do que os autores fazem quando planejam uma obra destas.
Qualquer coisa levada a seu extremo lógico torna-se deprimente, quando não cancerígena.
Agora, vamos voltar para A Mão Esquerda da Escuridão. Na obra, Genly Ai é um emissário da Terra, enviado para Gethen com o propósito de convidá-los para uma união entre povos em um sistema coletivo chamado Ekumen. Em Inverno, como é chamado o planeta pelos próprios habitantes de Gethen por conta da baixa temperatura, o protagonista nota a maior diferença entre os nativos e ele: ao contrário do que acontece em seu próprio planeta, a sociedade de Inverno é constituída de indivíduos sem sexo definido. E por conta de seus preconceitos e questionamentos inapropriados, Genly passa por várias provações e pode não conseguir completar sua missão, sem contar que corre risco de vida por estar ali.
O enredo do livro é muito bom, cheio de pequenos detalhes e maneiras inteligentes de desenvolver a narrativa bastante descritiva de Le Guin (ainda que isso também possa ser considerado um ponto negativo por conta do ritmo de leitura, que sofre com alguns trechos mais longos e extenuantes, mas vamos focar nos temas do livro), mas é na hora de debater gênero e o comportamento humano que a obra brilha.
— Experiência espantosa
Está cada vez mais difícil termos uma conversa sobre gênero de forma aberta em um país onde se especula mais sobre a vida pessoal e as intenções de quem não conhecemos ao invés de repudiar o crescimento de casos de feminicídio em nosso país ou da violência de gênero sendo negligenciada. Problemas como esses são a principal inspiração para as “mentiras” de Le Guin.
Em Gethen, não há discriminação de gênero, já que todos desempenham o mesmo papel em momentos diferentes da vida. Através do Kemmer, um período no qual os habitantes do planeta desenvolvem órgãos sexuais e sentem atração física pelo companheiro, podemos ver como vários questionamentos envolvendo a forma de nos relacionarmos são levantados.
Um homem deseja que sua viralidade seja reconhecida, uma mulher deseja que sua feminilidade seja apreciada, por mais indiretos que sejam esses reconhecimentos ou essa apreciação. Em Inverno, isso não vai existir. Julga-se ou respeita-se uma pessoa apenas como ser humano. É uma experiência espantosa.
É claro que Le Guin não é a única abordando temas voltados ao debate de gênero. Li recentemente um texto de James Davis Nicoll (o link fica aqui e no fim dessa matéria) e ele fala sobre a fixação de autores de ficção científica com premissas envolvendo planetas com uma população predominantemente, quando não completamente, de um único gênero. O que deixa as coisas um pouco complicadas é que na maioria dos casos temos a ausência do que seria o representante do sexo oposto sendo tratada como uma forma de alívio, é como se a presença de um ser “diferente de você” se transformasse em um enorme inconveniente. Preferimos viver alienados, porém confortáveis, ao invés de aprender com próximo.
Outro costume de alguns romancistas é simplesmente esquecer que o outro gênero existe. Como diz Nicoll, “a falta do outro gênero nem ao menos tem a intenção de dizer algo com isso, o autor apenas não se importou em incluir qualquer personagem do tipo, nem como coadjuvante […] Talvez o exemplo mais curioso seja o de Andre Norton, que lançou um livro (Plague Ship) sem qualquer mulher na história, mesmo sendo a própria escritora uma mulher”.
Não vou entrar em território de representatividade agora, mesmo sendo outro que precisa estar sempre em pauta, mas não podemos negar como muitos fãs de ficção científica e a comunidade nerd estão incluídos na parcela que não quer ver alguém do sexo oposto ganhando qualquer espaço na área de entretenimento, seja cinema, televisão ou quadrinhos. É só ver as reações negativas (e prematuras) à escolha de elenco nos últimos filmes da franquia Star Wars, isso sem contar que não são só comentários sexistas atacando as mulheres do filme, você encontra até xenofobia e racismo, e a pior parte é que não precisa procurar por muito tempo.
Em A Mão Esquerda, temos leituras diferentes para a forma que o sexo funciona. Talvez haja um gênero, e este seja próprio de Gethen; talvez três gêneros: masculino, feminino e neutro. Mas depois de conversar com um amigo que entende do assunto mais do que eu (vamos deixar claro que meu departamento é o de debate sobre a narrativa, estou apenas abrindo aqui os temas apresentados) e passou recentemente por uma transição importantíssima e de enorme impacto para sua vida. De acordo com ele, “os personagens parecem estar entre fluído e agênero. O que não deixa as coisas claras é a parte do acasalamento, porque se enquadra um pouco no cenário interssexual. Parece que Ursula quis intercalar essas três premissas”.
Independente das intenções da autora, o importante é notar como Inverno não faz distinção de sexo e com isso tem uma mente completamente diferente da nossa. É interessante notar como a abordagem de um tema abre a possibilidade para tantos outros debates relevantes, como o da cultura do estupro, outro que infelizmente tornou-se parte do nosso cotidiano.
Considere: não existe sexo sem consentimento, não existe estupro. Como ocorre com todos os mamíferos, o coito só pode ser realizado por convite e consentimento mútuo; do contrário, não é possível. A sedução certamente é possível mas deve ser tremendamente oportuna. Considere: não existe nenhuma divisão da humanidade em metades forte e fraca, protetora/protegida, dominante/submissa, dona/escrava, ativa/passiva. Na verdade, pode-se verificar que toda a tendência ao dualismo que permeia o pensamento humano é muito reduzida, ou alterada, aqui em Inverno.
Ainda assim, o próprio povo de Gethen tem seus preconceitos com a forma que Genly Ai se comporta e como as coisas funcionam com a espécie do emissário, isso somado ao estranhamento dos habitantes com a cor “escura” da pele do protagonista, mas o livro não dá tanto destaque para essa parte, então talvez seja um assunto melhor desenvolvido em uma matéria sobre outra obra onde isso seja predominante (sinta-se livre para indicar alguma nos comentários). Fica clara a intenção de Ursula ao mostrar como todos temos nossos próprios conceitos pré-estabelecidos e medo do que não compreendemos. No entanto, o livro também traz uma inesperada amizade que mostra dois lados com ideais diferentes, mas através de diálogos profundos e momentos para questionamentos existenciais, Ursula nos mostra a essência do que é ser um indivíduo que contempla seu mundo com fascínio, sem deixar que a incerteza tome conta da razão.
Talvez seja o que a ficção científica tem de melhor: criar empatia. Exploramos tantos mundos e espécies alienígenas; especulamos, extrapolamos e apostamos sobre o futuro; questionamos o sistema e tudo que há de estranho à nossa volta, mas o mais interessante da experiência é questionar a nós mesmos. Com “A Mão Esquerda da Escuridão”, Ursula K Le Guin conquistou vários prêmios, além da atenção de incontáveis fãs do gênero, por isso seu nome é tão poderoso.
Eu sei que não existe uma única resposta para a minha pergunta inicial, mas é essa a graça. Todos podem se interessar por sci-fi por incontáveis motivos, e expandir sua mente para debates e territórios que você nunca imaginou conhecer é um deles.
Talvez essa seja a função da ficção científica: abrir sua mente.
Luz é a mão esquerda da escuridão
e a escuridão, a mão direita da luz.
Dois são um, vida e morte, unidas
como amantes no kemmer,
como mãos entrelaçadas,
como o fim e a jornada
“A Mão Esquerda da Escuridão”,
de Ursula K. Le Guin
Editora Aleph, 2015
296 páginas
Tradução de Susana Alexandria
Quero agradecer Lorrana Côrtes e Gabriel Carvalho, por terem me ajudado. Sem vocês esse texto seria um desastre.
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Fontes: