A última Carta

Hamana Fernandes
ProduçãoeRevisãodeTexto
7 min readNov 11, 2020

Autor/ Hamana Fernandes

Estava andando na casa em que meu marido e eu compramos, resolvi passear para conhecer melhor o ambiente, no momento em que abri a porta da garagem caindo aos pedaços, me deparei que em cima do armário enferrujado, atrás de todo aquele lixo, tinha uma caixa pequena. Algo nela me fez sentir uma certa angústia, devo me preocupar com o fato de não ser minha, por isso não devo abrir, ou, devo me preocupar em não abrir e acabar nunca descobrindo o que se tem nela. Algo me diz que é antigo, pelo estado que se encontra aquela caixa, feia, amassada, fedorenta e misteriosa.

- Vou abrir, agora eu moro aqui. — Digo, animada.

Peguei a caixa fedorenta a mofo e coloquei no chão com todo o cuidado, talvez tenha algo útil que eu consiga vender e lucrar alguma coisa. Tentei abrir com as mãos, mas falhei, fui até a cozinha, peguei uma tesoura, olhei meu marido sentado comendo pipoca e olhando jogo.

- Que bom! Vou ter mais tempo para bisbilhotar. — Digo, baixinho.

Abri a caixa com todo o cuidado, para não prejudicar nada, o que tinha nela me fez paralisar.

- QUE?! — Gritei, confusa.

Na caixa fedorenta e velha, tinha apenas papel, cartas, na verdade, amarelas do tempo em que estão guardadas.

- O que eu vou fazer com isso? — Digo, chateada

Olhei para a caixa novamente, tentando encontrar algo útil para não desperdiçar o meu tempo, mas encontrei apenas papel, papel que vai para o lixo. Peguei a caixa no colo e resolvi colocar na rua, mas algo chama a minha atenção, uma carta aberta, praticamente me implorando para ser lida.

- Hum… — Digo, com um olhar curioso.

Vou aproveitar esse momento para ler, já que o Renato está olhando o jogo, tenho tempo para dar e vender.

Tirei seis cartas da caixa e comecei a ler.

De: Seu ninguém

Para: Meu alguém

Minha querida Flor, essa saudade destrói aos poucos meu coração, esse coração que bate só por você. Queria poder estar em seus braços que parecem nuvens e em seus lábios de pétalas de rosa, queria minha alma abraçada com a sua, chego a sentir seu perfume de lavanda, é minha flor favorita. Dizer que te amo é tão fraco, prefiro dizer, te sinto!

Abraço do seu Espinho.

Fechei a carta com uma falta de ar, que sensação estranha, consigo me sentir no lugar desse alguém. Preciso abrir outra, parece que minha curiosidade cresceu.

De: Seu ninguém

Para: Meu alguém

Minha querida Abelha, obrigado por responder, fiquei ansioso aguardando sua carta, não sei se estou vivendo ou apenas esperando te ver novamente. Preciso do teu sorriso tanto quanto preciso de ar, não estou apenas apaixonado, estou vidrado, você sente o mesmo? Sinto que estou sonhando, é real? Me belisquei, é real, e dói, não o beliscão e sim não ter você aqui.

Te sinto!

Abraço do seu pólen.

Estou tremendo, estou com fome de quero mais, preciso ler mais. Nunca quis ler cartas de pessoas que podem nem existir, mas algo nelas me fascinam. Abri mais uma carta.

De: Seu ninguém

Para: Meu alguém

Meu Anjo, você me deixou ainda mais feliz com sua última carta, quero saber como você consegue ser tão esplêndida, você transcende uma pureza celestial, seu aroma é do vento e do céu. Sinto sua mão abraçada com a minha, fico arrepiado só de imaginar, e como é bom imaginar, pelo menos você está em minha mente.

Te sinto!

Abraço do seu amor.

Estou sentada no chão com as cartas em volta, quero saber quem são essas pessoas, quero saber tudo sobre elas.

De: Seu ninguém

Para: Meu alguém

Minha estrela brilhante, estou aguardando ansiosamente por sua carta, deve ter se perdido, mas não consigo deixar de escrever minha paixão por você, espero que você esteja bem, soube por alguém que você estava um pouco abatida, está doente? Te sinto!

Abraço da sua noite.

O que aconteceu com “alguém” ela não respondeu sua carta, preciso de respostas.

De: Seu ninguém

Para: Meu Alguém

Meu sol, você para mim, é calor, é frio, é exatamente os dois, com você eu sinto mil sensações, com você eu não sinto tristeza apenas paixão. Estou um pouco preocupado, você ainda não respondeu minhas cartas, devo me preocupar? Te sinto!

Abraço da sua lua.

Meu marido me chamou para saber o que estou fazendo, respondo com tanta rapidez que ele aparece na garagem com sua cara de tédio, querendo atenção.

- Belinda- Diz Renato com uma voz calma.

- Fala homem? — Digo, irritada.

- Está catando lixo? -Diz Renato com curiosidade.

- Lógico que não, apenas estou organizando alguns papéis.

Ele sai da garagem, para poder me deixar quieta, homens conhecem a voz de uma mulher que não quer ser incomodada. Vou abrir a última carta e acabar com essa angústia.

Essa carta estava manchada, um pouco amassada, resolvi ler logo, estava ficando impaciente.

De: Seu Ninguém

Para: Meu alguém

Com dor no meu coração, escrevo essa última carta, você foi o meu alguém, e sempre será. Não vou dizer que foi uma tragédia a sua ida para algo maior, tragédia para mim, foi não poder ter um pouco mais de tempo para aproveitar com você momentos não vividos, me contentaria apenas com alguns minutos. Queria poder te sentir a última vez, escutar a sua voz, que eram melodias em meus ouvidos, olhar em seus olhos uma única última vez, seus grandes olhos escuros que nem a noite, nunca existirá alguém que tenha esses olhos, gostaria de me afundar neles, como se estivesse me afogando no fundo do oceano. Se eu fosse privilegiado com essa dádiva, eu pegaria a sua mão e caminharia sem rumo, eu não falaria, apenas escutaria, deitaríamos na grama e olharíamos o céu no fim de tarde, ele fica lindo, laranja, rosa, azul, todas as cores, mas nada seria tão belo como você.

Te sentirei para sempre!

Adeus minha Luz!

Eu estou em choque, não pode ser, como pode ter acontecido isso? Quem são essas pessoas, eu li suas cartas, cartas que eram para outra pessoa, que jamais foram entregues, quero saber como faço para encontrar “ninguém”.

Comecei a virar a casa do avesso. Encontrei uma foto de um senhor com cabelos brancos colhendo uma flor, só pode ser ele, vou perguntar para alguém na rua, não é possível que ninguém conheça esse senhor.

Consegui depois de horas perguntando para os vizinhos. Descobri que se chama Otávio, no caso Sr. Otávio, ele está morando com sua filha, pois está com 72 anos e é divorciado.

Liguei e falei com uma moça muito simpática, falei que encontrei algumas coisas na casa em que comprei e que queria saber se era ele o antigo dono. Era ele que morava nessa casa, mas tinha vendido para outra pessoa, enfim, a caixa estava esperando por mim.

Vou ao encontro da filha do Sr. Otávio, depois de 2 horas, chego em uma linda casa rústica, com árvores que não se tinha como contar, eram milhares.

Olhei para frente, alguém distante se aproximava, aos poucos eu conseguia ver, era ele, o “seu ninguém”.

Que sensação estranha, eu conhecia. Óbvio eu tinha a sua foto.

Ele se aproximou ainda mais, quando estávamos a um metro de distância, ele me olhou nos olhos e falou.

- Emma? — disse Sr. Otávio confuso.

- Não, sou Belinda! -Digo, sorridente

- Desculpa Belinda, esqueci de avisar, papai tem Alzheimer, e o nome Emma é um mistério — Disse a moça simpática, filha do Sr. Otávio.

Algo em meu peito estava apertado, eu conhecia esse senhorzinho simpático. Ele se aproximou ainda mais, muito perto do meu rosto e foi para trás assustado.

- Seus olhos — Disse Sr. Otávio assustado

- Sim? — digo confusa.

- São os olhos de minha Emma, escuros que nem a noite, nunca encontrei alguém que tenha os olhos iguais aos dela. — Disse Sr. Otávio pensativo.

- Desculpa Belinda, vou ter que levar ele para dentro, está ficando frio. — disse a filha dele.

- Claro, só estou aqui para entregar essa caixa. — Entreguei a caixa.

- Claro! Obrigada pelo carinho, Belinda, tchau!

Me despeço do Sr. Otávio e de sua filha, mas ele continua me olhando curioso, mas agora está sorrindo.

Um dia depois, pela manhã, recebo uma ligação, a filha do Sr. Otávio me dando más notícias. “seu ninguém” faleceu.

Passei o dia triste. De repente a campainha toca.

DINDON!

-Entrega para Belinda. — Disse o entregador.

- Obrigada!

Dei umas moedas para o entregador, ele me agradeceu e me entregou a caixa velha, a mesma caixa que eu tinha levado ontem. Nela tinha às seis cartas que eu já tinha lido e mais uma, essa era para mim.

De: Otávio

Para: Belinda

Estou escrevendo essa carta, para lhe agradecer, você me trouxe paz, graças a você, tive a oportunidade de ver pela última vez os olhos dela, olhos grandes e escuros como a noite, que nem os de Emma. Ela foi o meu primeiro amor, sempre desejei em ter ela por alguns minutos, só para matar a saudade. Obrigado minha querida amiga Belinda, você deixou um homem feliz, você terá para sempre a minha gratidão. Obrigado por me fazer lembrar desse momento, vou dormir pensando nos olhos naqueles olhos escuros, por causa dessa doença, esqueci de muitas coisas, menos da minha alguém.

Eu ainda sinto! Adeus!

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