Batatinha quando apodrece!

Hamana Fernandes
ProduçãoeRevisãodeTexto
3 min readDec 8, 2020

Hamana Fernandes

No silêncio da noite, os sussurros das plantações compõem uma canção.

O vento sopra sereno por esses lados, guiando habilmente a orquestra que se desdobra diante de seus toques. Ele dança com os pés de tomate e farfalha as folhagens das cenouras, encoraja os grilos e as cigarras a se juntarem ao coro. A melodia formada por eles sobe e desce com o passar dos minutos, um tique-taque harmonioso que percorre a propriedade de um canto ao outro dos campos e preenche a noite escura.

O solo aqui é fértil. Para todas as direções que se olhe, hectares e mais hectares de terra arada tocam o céu. Salpicados aqui e ali, esqueletos adormecidos de tratores repousam, suas placas de metal esfriando à medida que a lua ocupa o lugar do sol.

Próximo à estrada, ergue-se uma antiga casa de dois andares, cujas luzes ainda estão acesas. Por causa do calor grosseiro de final de verão, todas as portas e janelas se encontram abertas, permitindo a livre entrada de mariposas e ar fresco. Do lado de fora, sentado em uma cadeira de praia grotescamente desfiada com uma pá apoiada contra seus joelhos, o dono da fazenda fuma um cigarro, assopra pequenos anéis de fumaça para se distrair.

Há uma garagem anexada à direita do casarão. Essas portas, curiosamente, estão barradas, presas com correntes e cadeados. Plásticos escuros cobrem os vidros no topo das paredes, mas o carro propriamente digamos, está estacionado alguns metros mais para frente, curtindo no orvalho da noite.

Para uma casa tão grande, os quartos se mostram assustadoramente vazios. A poeira se acumula em cima das estantes e cria camadas cinzentas sobre as camas desnudas. A cozinha, assim como a sala, está amarrotada de lixo e louça suja, latas, pratos e embalagens que se amontoam sobre os móveis e mancham as tábuas dos pisos, os tapetes grossos de lama e farelo.

Aqui, as dobradiças rangem por todos os cantos. As cortinas mal se movem, pesadas de tão encardidas. Não há vasos de flores e nem quadros bonitos, mas as luzes estão acesas, e o homem fuma sozinho com as mãos cobertas de terra.

Ao redor dele, a iluminação amarelada transborda pelas janelas e se derrama sobre a varanda. A luz escorre cor de mel pelo chão até alcançar os pés de batata que crescem no limite da estrada de areia, e cria a ilusão de que as folhas estão em chamas,

Mesmo na baixa luminosidade, pode-se perceber um desvio no padrão pré-definido das batatas plantadas. É sutil, apenas um espaço de solo revirado que mal chega a um metro e se esconde no meio das folhagens. Não há nada crescendo ali em cima, justamente porque à terra foi trabalhada hoje, logo depois de o sol se pôr.

O buraco que foi cavado tem aproximadamente um metro e meio de profundidade. Não é muito — não o suficiente para uma cova — , mas é o suficiente para esconder um corpo. Um corpo jovem, encolhido, enterrado indignamente com as mãos torcidas diante do peito e joelhos dobrados para se fazer caber em um espaço estreito demais para comportar um ser humano.

O fazendeiro traga o seu cigarro uma última vez. Ele fita os ramos dos pés de batata se enrolando e se esticando pela terra fértil — bem adubada — e então suspira e se levanta da cadeira. Ele deixa a pá encostada no cercado da varanda, limpa as mãos nas calças e pisa na bituca de cigarro antes de entrar em casa.

No hall, as mariposas estão voando ansiosas em volta da lâmpada principal, batendo umas nas outras e esvoaçando sala adentro. Na rua, os sapos se juntaram à orquestra, e o homem se espreguiça enquanto sobe as escadas para o segundo andar.

Ele sabe que os ramos dos pés de batata logo cobrirão aquele pedaço de terra vazia. Ele sabe que a natureza logo seguirá seu curso, e sabe que ninguém nunca vai se dar conta.

Ele ouve o canto da noite e os gritos abafados vindos da garagem, mas ele dorme tranquilo, porque as suas batatas, os seus tomates e as suas cebolas vendem bem.

--

--