André Rodrigues
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6 min readDec 8, 2020

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SALGUEIROS QUE CHORAM LUAR

Autora: Melissa Santos Larcen

Editor: André Rodrigues Ciria

Photo by Nancy Stapler on Unsplash

Há lobos rondando por essas colinas.

Você cresceu nelas e sabe que eles não estavam aqui antes. Seu pai, com as grossas sobrancelhas franzidas e o velho rifle de ferrolho encaixado na curva do cotovelo, uma vez lhe disse que os predadores menores raramente se atrevem a caçar por onde os ursos pardos caminham. Não é por respeito, ele havia explicado, agachado em meio à folhagem, erguendo o rifle para apoiá-lo contra o ombro e mirar.

É pela certeza de que, frente a frente com um urso adulto, nem mesmo a mais saudável das matilhas sairia do confronto ainda intacta.

Você tinha apenas oito anos, e ele estava apontando a arma para a cabeça de um cariacu.

Seu pai era um bom caçador.

Na pequena casa aconchegada entre os altos abetos da floresta e o bifurcado riacho que serpenteava na direção da pradaria, vocês comiam tudo aquilo que ele conseguisse abater. Coelhos. Veados. Trutas e achigãs. Enquanto você brincava perto dos salgueiros da colina, seu pai escarneava as carcaças à margem do rio e tratava do couro para vender.

Ele tinha um sistema, rígido e eficaz. Ele era confiante, e rápido, e você nunca o viu hesitar, nunca o viu expressar incerteza.

Assim como você, ele havia crescido naquelas terras, e aprendeu a se virar com o que elas tinham para oferecer.

O disparo de um rifle de ferrolho é ensurdecedor.

Você se lembra de se encolher contra a vegetação ao ouvi-lo, os pássaros esvoaçando para além da copa das árvores e fugindo dos ecos rasgando o ar. Você se lembra do som que a criatura fez, o movimento de sua cabeça quando as galhadas pesaram, e o abafado baque de seu corpo contra o chão.

Seu pai era um bom caçador.

O cariacu tocou o solo já morto, mas você se lembra de seus olhos assustados, ainda abertos, refletindo a complicada teia de galhos e folhas que cobriam o céu.

Você se lembra dos olhos do urso, mais adiante, escondido próximo às rochas, e do jeito que o seu pai abaixou o rifle com surpresa.

Você se lembra do medo em sua voz, e de ele mandar você correr.

Na velha cidade em que vocês costumavam comprar grãos e tudo aquilo que não eram capazes de fabricar, dois homens pararam diante da delegacia e tiraram os chapéus para você. Sentada nas escadas, ao lado do xerife, você percebeu o sangue manchando as mangas de suas camisas, encharcando os joelhos de suas calças.

Sentada na escada, ao lado do xerife, você entendeu a mensagem antes mesmo de eles abrirem a boca.

Foi o urso, os caçadores disseram, mal conseguindo manter o contato visual. Não sobrou… não sobrou muito do corpo pra enterrar.

O xerife, com as bochechas enrugadas e o bigode cobrindo-lhe metade do rosto, suspirou, e lançou na sua direção um olhar de pena. Os caçadores baixaram as cabeças, seguraram os chapéus junto ao peito e não adicionaram mais nada.

Você piscou, encarou suas botas e não soube ao certo como reagir.

No fim, seu pai era um bom caçador, mas era menor, muito menor do que imaginava.

O xerife não tinha filhos, então deixou você ficar em um dos muitos quartos vazios de sua casa. Sua esposa sorriu quando você disse que não sabia ler, e então disse que iria te ensinar.

Eles foram bons para você. Gentis. Genuínos.

Então, você fingiu que não sentia falta do riacho, dos salgueiros e das colinas, e deixou a casa aconchegada nos limites da floresta de abetos para trás.

Eventualmente, você se esquece da floresta.

Eventualmente, você para de comparar as refeições da esposa do xerife com os ensopados de seu pai e, eventualmente, você não mais sonha com os olhos escuros do cariacu.

Eventualmente, você ouve um uivo.

Eventualmente, você tem vinte quatro anos, e encontra o seu caminho de volta para casa.

Os uivos guiam você até lá.

Quando você era criança, e corria pela grama alta e se pendurava nos gentis galhos curvos dos salgueiros, todos os lobos da região já haviam ido para o norte, se distanciando cada vez mais das obras da ferrovia. Vez ou outra, quando o inverno começava a dar as caras e transformava o riacho perto de casa em gelo, você conseguia ouvir. Se o vento soprasse na direção certa, e a noite estivesse suficientemente quieta, com a lua luminosa e as estrelas suspensas no ar, você conseguia ouvir os uivos que vinham das montanhas, gélidos e solitários como a primeira neve da temporada.

Agora é verão. Agora, você está cruzando a pradaria e o riacho está correndo, e os uivos estão ficando cada vez mais altos.

Agora, os lobos estão parados sob os salgueiros, e eles estão olhando para você.

Há lobos rondando por essas colinas.

Você olha pela janela suja, empoeirada, e vê o cavalo que a trouxe até aqui marchando de um lado para o outro na frente da varanda, as rédeas que você amarrou na cerca mantendo-o perto. Os uivos estão deixando ele nervoso. A casa está caindo aos pedaços. A noite está quente, clara, e as estrelas estão suspensas no ar. A lua está cheia.

Há lobos, rondando por essas colinas.

Se você semicerrar os olhos na direção da pradaria, você pode vê-los olhando de volta, a prata do luar fazendo-os brilhar. Eles são maiores do que você imaginou, mais altos, mais esguios, com as patas dianteiras compridas e a coluna retorcida. Eles são maiores do que você imaginou e eles não deveriam estar aqui.

Você acende uma das lâmpadas a óleo e, já que não vai conseguir dormir, começa a limpar a casa em que você cresceu.

Pela manhã, não há rastro algum da matilha que você viu ontem à noite.

A pradaria está silenciosa. A floresta, atrás da casa, também. Você limpou o que conseguiu e ficou surpresa ao perceber que alguém esteve acampando por aqui. Você deixa as roupas que encontrou no sofá, alinha as botas desconhecidas perto da porta.

Você pega uma das facas de caça que seu pai guardou sob as tábuas do chão e decide ir até a clareira em que ele morreu.

Os caçadores, ao que parece, fizeram uma pequena cova no local — um amontado triste de pedras empilhadas, coroadas com uma cruz de madeira torta, fincada às pressas no solo macio.

É um milagre que ela tenha resistido ao tempo. Dezesseis anos. É um milagre que você tenha resistido.

Você respira fundo e se senta ao lado da cova. Não há nada para se dizer. O sol está começando a ficar alto no céu e o calor vai estar insuportável em algumas horas, mas o farfalhar das árvores é reconfortante, e o zumbido dos insetos e o ocasional grasnar de um pássaro faz você se sentir em casa. Faz você se sentir bem.

Você enterra a faca sob o amontoado de pedras. Você abraça os joelhos, e promete a si mesma que não pretende ficar.

Você só… você só pretende dizer adeus.

(Você não vê a carcaça do urso pardo, alguns metros mais para frente. Você não vê as inúmeras pegadas em volta dela, pegadas compridas demais para pertencerem a um animal comum.

Você não vê os lobos, que não são lobos, estudando você da folhagem grossa. Você não vê seus olhos brilhantes, os corpos cobertos de cicatrizes.

Você não vê o quanto eles querem que você os veja).

Um mês se passa. Você voltou para a velha cidade, para os velhos trilhos de trem. A civilização é barulhenta e as carroças rangem e os condutores gritam e a música do saloon é alta, mas você voltou para a cidade naquele mesmo dia assim que o sol se pôs, porque os lobos não apareceram de novo e a casa que era sua já não mais pertencia a você. São tempos difíceis.

A esposa do xerife faleceu na semana passada. Tuberculose. São tempos difíceis.

Você se pergunta por que ainda está aqui.

(Você esteve esperando pelos uivos esse tempo todo. A lua trocou de fases, completou um ciclo.

Você esperou.

Hoje à noite, quando você estiver se preparando para dormir, você pode ter certeza de que eles chamarão o seu nome.

Você não precisa mais esperar).

Há lobos, rondando por essas colinas.

A lua os criou não faz muito tempo. Eles choram e uivam e torcem as orelhas para ela, mas não recebem resposta alguma. Nunca receberam.

Você vai encontrá-los sob os salgueiros. A lua cheia vai transformar os troncos em espelhos de prata, vai murmurar baixinho em seus ouvidos. O ar está ficando pesado, carregado como se fosse chover, como se o céu fosse despencar e espalhar suas estrelas pela extensão da pradaria.

Os lobos, rondando por essas colinas, piscam lentamente para você.

Assim como o seu pai, você cresceu nessas terras. Assim como ele, você aprendeu a sentir conforto nesse chão.

Os lobos, rondando por essas colinas, querem saber o que você deseja.

Você deseja se juntar a eles.

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