Achados de Viagem: O que uma Muralha e um Lago podem nos dizer sobre Estratégia e sobre o Dilema da Inovação?
Neste artigo, a partir de duas “aventuras” que vivi na cidade de Cartagena, Espanha, analiso as estratégias bem sucedidas do herói romano Cipião, e como elas se aplicam ao mundo dos negócios e da tecnologia, sob a luz do dilema da inovação.
Introdução:
Tem 3 coisas que eu adoro desde pequeno: Estratégia, Viagens e Fotografia.
A estratégia permite fazer muito com pouco, com o que se tem, e quando temos poucos recursos, é o caminho para crescer. Pelo menos foi pra mim.
Eu nasci e me criei na Bela Vista, um bairro do centro de São Paulo, onde convivem diversas culturas, incluindo a Italiana. E mesmo que meu interesse por estratégia tenha nascido do fascínio pela cultura oriental, como viver na Bela Vista e não ter curiosidade sobre Roma? Quando ouvi e cantei pela primeira vez o hino da Itália, logo me chamou a atenção um nome que consta no hino: “Dell’elmo di Scipio S’è cinta la testa”. Quem diria que um dia eu iria visitar lugares onde esse tal de Scipio ou Cipião lutou?
Viajar pra mim tem a ver com conhecer outros mundos, outras culturas… viver aquilo que a gente viu na TV. Quando eu era pequeno, passava na TV, na sessão da tarde, alguns filmes de aventura, tipo Indiana Jones, ficava fascinado. E bem lembrei desses filmes nos momentos que vou compartilhar aqui, hehehe.
Aqui seguimos, vou compartilhar momentos de “aventura” pela linda cidade de Cartagena, mais especificamente em sua muralha e seu lago, explicar como muralha e lago foram importantes para a estratégia de Cipião ao conquistar essa cidade, e como essa mesma estratégia se aplica ao dilema da inovação, nos mercados de Fotografia, Cloud Computing e Generative AI. Espero que gostem!
Viagem: Brincando de Indiana Jones em uma das regiões mais incríveis do mediterrâneo.
Cartagena
Cartagena é uma cidade incrível da Província de Murcia, na Espanha. Banhada pelo Mediterrâneo, além de estar perto de praias maravilhoas, permite rotas terrestes para a península ibérica, e marítimas para outros países da Europa, e da Africa. E essa localização foi o motivo de sua fundação, pela civilização africana de Cartago ou Civilização Púnica (uma das maiores potencias comerciais, marítimas e militares de seu tempo), e de sua conquista e expansão sobre o domínio Romano. Nessa cidade cheia de história, vivi dois momentos no estilo Indiana Jones, e vou compartilhar abaixo.
A Muralha
Sabe aquelas cenas do Indiana Jones onde ele está num túnel subterrâneo claustrofóbico e encontra algo assustador?
Uma das minhas primeiras visitas na cidade foi o museu da muralha punica. Essa muralha foi construída para defender a cidade de ataques externos. Era feita de pedra e era dupla. Duas paredes de pedra e soldados no meio. Soldados, armas, munições. Essa era a forma tradicional, e efetiva de se defender naquela época, e vemos muralhas da Europa até a China seguindo esse padrão.
Pois bem, o museu era subterrâneo. Escuro. E vazio. E eu percorrendo os corredores de repente vi uma escada que descia para uma construção meio oval. Achei estranho e decidi ver mais de perto. E quando estava lá embaixo, olhei ao redor e vi… túmulos. Ossos. Caveiras. Não entendi nada e saí de lá o mais rápido possível. Tempos depois, descobri que se tratava da cripta de San José, que foi construída ao lado da muralha.
Enfim, voltando pra Muralha, essa foi a tentativa Cartaginesa de se defender dos ataques. Uma tentativa tradicional e eficiente.
O Lago
Sabe aquelas cenas do Indiana Jones onde ele está num vale e de repente começa a encher de água?
O Porto de Cartagena fica ao Sul da cidade. E antigamente havia um lago ao Norte. Logo mais você verá a importância estratégica de olhar para esse lago, mas aqui vou falar da minha busca por ele. O lago em si já foi quase completamente aterrado e construíram o novo centro da cidade em cima. Porém sobrou um pequeno trecho da borda do lago e do rio que o ligava até o mar.
Pois bem, eu “queria porque queria” encontrar esse lago. E já no final da viagem, vi um vale perto do porto, e decidi descer algumas escadarias e andar pelo vale. Ele era coberto de grama, uma paisagem bem legal.
Porém, conforme fui andando, fui vendo… água. Na verdade eu estava andando pelo leito seco daquele rio. E como pessoa inconsequente, caminhei por aquele lugar onde só estava eu até chegar em uma comunidade de pescadores e ver o mar… bom, sabemos que a maré varia então… antes que ela subisse, tratei de voltar pelo mesmo caminho o mais rápido possível, enquanto ele ainda estava seco.
Agora vamos ver o que essa muralha e esse lago tem a ver com uma das maiores vitórias estratégicas de Roma?
Estratégia: Roma (Cipião) x Cartago (Anibal)
“dell’elmo di Scipio S’è cinta la testa”
Cartago Nova ou Cartagena foi fundada pela civilização Cartaginesa ou Punica (aquela das guerras púnicas que vemos na escola). E era essencial para o domínio da peninsula ibérica, e posterior expansão até Roma. A civilização cartaginesa, na verdade, chegou até às portas de Roma, quase derrubando o império, sob a liderança de Anibal, um dos maiores estrategistas de todos os tempos. E só não conseguiu exito graças a um tal de Cipião.
Cipião, como chamados a Publius Cornelius Scipio Africanus Maior foi um lider político e militar do império romano. Sua vida é tão extensa e complexa que poderíamos falar dele todo o artigo. Dizem até que ele inspirou o filme gladiador. Mas vou focar aqui em 3 características:
- Pessoas: Uma de suas frases mais famosas foi: “Minha mãe pariu um lider, e não um guerreiro”. E um lider lida com pessoas. Essa frase foi uma resposta às críticas que sofria por não ser tão violento e cruel quanto se esperava dele, libertando prisioneiras de guerra e mesmo enviando seu inimigo Anibal, vivo, para o exílio. Mas como veremos aqui, e se pode ver por toda a sua história, essa habilidade com pessoas e alianças permitiu que ele vencesse várias batalhas.
- Humildade: Cipião liderava o exercito do maior império de sua época, e mesmo assim tinha a humildade de admitir que esse império não era perfeito, e haviam táticas que deveriam mudar. E ele sabia o que estava fazendo, pois mesmo como lider também tinha a humildade de ir pro campo de batalha, de colocar o pé na lama pra entender o que os soldados estavam passando.
- Coragem para inovar: Além da humildade de ver que algo poderia ser melhorado, ele tinha a coragem de mudar, de testar, de colocar coisas improváveis em execução. Isso já é difícil pra um exercito pequeno, pra uma guerrilha, imagine para o exercito romano.
A Muralha que defendeu Anibal
Sabe aquela muralha que visitei?
Então, ela era a principal defesa da cidade. E serviu bem até, mas não foi suficiente. O primeiro ataque romano veio de seu acampamento, que estava a oeste de Cartagena. Ele estava numa localização privilegiada, impedindo a cidade de acessar o continente. Roma fez seu primeiro ataque de modo clássico, cercando a cidade, atacando por terra vindo do Oeste e pelo mar vindo do Sul. A forma clássica e elegante como um império atacaria. Porém, não conseguiu invadir a cidade. Defender é muito mais fácil do que atacar.
O Lago que Cipião Cruzou
Sabe aquele lago onde eu andei?
Cipião não desistiu, e usou o que tinha de melhor. Graças ao seu trato com pessoas, a todos os aliados que havia feito ali na Espanha, ele havia obtido uma informação muito importante: O lago não era profundo, e quando a maré baixava era possível caminhar por ele. Assim, Cipião teve a humildade e a coragem de mudar sua tática, pegando parte dos seus homens e colocando o pé na lama. Lançou outro ataque, novamente indo de encontro a muralha e ao porto, e quando os homens de Anibal se concentravam para defender a parte sul (Porto) e Oeste (acampamento romano), ele foi, como numa ação de guerrilha, com 500 homens para cruzar o lago. E, olhem só, quase ninguém do exercito de Anibal estava cuindando do muro no lado do lago, nunca imaginariam que o exercito romano atacaria por ali. Atacou. Venceu. Conquistou Cartago Nova. E depois a Espanha. E salvou Roma.
Dilema da Inovação:
Fotografia: Apple (Jobs) x Kodak
Nós já falamos sobre Dilema da Inovação aplicado ao mercado fotográfico em outro artigo, e vou colocar ao final o link. Aqui vou falar de dois grandes representantes das mudanças nesse mercado, a Kodak, que já foi uma das maiores marcas de máquinas e filmes fotográficos, e a Apple.
Muralha: A Kodak, assim como Aníbal, encontrou na qualidade da fotografia sua muralha, e só olhava para o lado oeste e para o porto, para os fotógrafos profissionais e para o governo. Ela acreditava que tendo o melhor produto, estaria segura.
Lago: Assim como Cipião, um empreendedor chamado Steve Jobs teve a humildade de repensar a forma como as fotos existiam. Seu lago foi o público de entrada da Kodak, que não era profissional, e não estava satisfeito em gastar uma fortuna para tirar poucas fotos. E o caminho pelo lago foi comprar a patente da própria Kodak e fazer cameras digitais. No começo a qualidade era baixa, mas alguns entusiastas compraram. E com o passar do tempo, em especial o surgimento dos Smartphones, as cameras passaram a fazer parte deles. A Kodak decretou concordata, e boa parte das cameras existentes no mundo hoje estão em iPhones da Apple.
Cloud Computing: Amazon Web Services (Bezos) x IBM, HP & etc
E no mercado de computação em nuvem? Será que também tivemos muralhas e lagos no caminho do maior player do planeta?
Muralha: Assim como Aníbal, grandes fabricantes de servidores como IBM e HP focavam na muralha, em sistemas de altíssima performance, olhando para o porto e para oeste, para os grandes clientes que tinham como consumir tais servidores bem como estruturar datacenters para abrigá-los.
Lago: Assim como Cipião, Jeff Bezos viu um lago nos empreendedores que estavam iniciando startups e não teriam como arcar com esses servidores. E a oportunidade de cruzar o lago estava em casa. Sendo um dos maiores e-commerces do mundo, a Amazon tinha muitos servidores, mas não os utilizava da mesma forma o tempo todo. A demanda era muito diferente em uma data especial como perto do Natal, e em meses comuns. Porém os servidores estavam lá. Por que não alugá-los pra quem precisa? E assim nasceu a Amazon Web Services, alugando servidores em nuvem, indo de startups para multinacionais, e hoje quase toda empresa usa algo de computação em nuvem, boa parte da Amazon.
Generative AI: Google x Microsoft x OpenAI
E quanto à inovação mais recente que temos?
Aqui claro há mais incerteza em falar, mas vou me arriscar. E vale lembrar uma famosa frase: “Gato escaldado tem medo de água fria”. Dilema da Inovação é um dos livros mais populares do vale do Silício, um dos favoritos do nosso primeiro exemplo, Steve Jobs, e de seus seguidores… e nenhum deles quer ser o próximo Aníbal.
Muralha: As coisas seguem tão rápido que até é difícil estabelecer onde está a muralha. Mas poderíamos colocá-la no Status Quo. Google focava, até há algum tempo atrás, no buscador. Sua tecnologia de inteligência artificial estava direcionada para o sistemas de busca e publicidade, inclusive aumentar a eficiência da publicidade. E suas pesquisas estavam focadas (ao menos era o que mais se destacava) em sistemas de inteligência estratégica. A Deep Mind investia em sistemas capazes de ganhar um jogo de Xadrez contra um ser humano. Depois em ganhar um jogo de Go contra um humano.
Lago: Aqui é complicado mas vou me arriscar. Já ouviu falar do teste de Turing? Aparece em vários filmes de ficção científica, e basicamente diz respeito à capacidade de um robô ou AI de distinguir de um ser humano. Ou seja, se você conversar com uma AI e com um humano, e não souber distinguir, ele passou. Pois bem, o ChatGPT pode não jogar bem Xadrez, pode alucinar e muito (inclusive um dia publico os bastidores desse artigo e mostro o quanto ele alucinou falando de Cartagena) mas… ele passou no teste. E na minha opinião, passou com louvor. E isso fica claro pela velocidade de adoção que a OpenAI teve em um produto com uma interface quase técnica.
Mas ninguém a essa altura quer ser Aníbal e não olhar pro Lago.
A Microsoft não deixou de ver o lago. Antes que o maior sistema de Generative AI causasse problemas, ela simplesmente o comprou, comprou a OpenAI e adicionou a seus serviços.
O Google não deixou de ver o lago. Pouco tempo depois do sucesso do ChatGPT, ele lançou o Bard, e agora o Gemini, e direcionou os recursos da Deep Mind, a meu ver antes focados em sistemas mais estratégicos ligando deep learning com reinforcement learning como os famosos sistemas de Xadrez e Go que venceram os humanos, para Generative AI. O desafio que antes era tomar decisões melhor do que um ser humano agora virou para falar e se comunicar como um ser humano. Mas além desse valor que vemos como usuários, o desafio é dominar os sistemas de LLM, tendo os melhores modelos de LLM e depois podendo fornecê-los pré treinados a quem precisa. Ou seja, de maneira resumida o Google viu o lago e direcionou seus esforços pare ele.
Conclusão:
Entenda as pessoas, elas podem trazer informações preciosas. Da profundidade do lago de Aníbal à velocidade de adoção do ChatGPT, tudo vem das pessoas. E a duras penas, muitos executivos aprenderam a olhar com muita atenção para as pessoas, compreendê-las e ler os sinais que vem delas.
Das pessoas e do seu conhecimento, traga o máximo de informações para traçar a melhor estratégia, e não tenha medo de inovar. Da Kodak a Aníbal (que digo aqui, foi um dos maiores generais da antiguidade e também era um inovador, mas não tão surpreendente quanto Cipião), quem ousou venceu.
Tenha humildade para descobrir lagos e caminhar por eles, mesmo sujando seus sapatos de lama, mesmo agindo como uma empresa pequena quando se é um gigante.
Isso serviu para um império, serve para nós, para nossas carreiras e para a vida.
Referências:
Dilema da Inovação: https://medium.com/productmanagerslife/dilema-da-inova%C3%A7%C3%A3o-como-mudan%C3%A7as-disruptivas-impactam-empresas-mercados-e-pessoas-6cc5f0cd667b
ChatGPT passou o teste de Turing (Nature): https://www.nature.com/articles/d41586-023-02361-7
Cartagena:
Batalha de Nova Cartago:
Cipião:
Anibal:
Gabriel, R. A. (2008). Scipio Africanus: Rome’s Greatest General. Potomac Books, Inc..