Kintsugi: Transformando nossas cicatrizes em arte

Christian Zambra
productmanagerslife
9 min readFeb 17, 2024

Esse é um artigo para a pessoa que habita em cada Product Manager, em cada Empreendedor, em cada Profissional, em cada Humano. A pessoa que vive, e em cuja vida colocou rupturas, cicatrizes. E sobre como cicatrizes podem ser transformadas em arte.

Vamos falar de três palavras japonesas:
金継ぎ Kintsugi: Literalmente significa emendar com ouro.
侘寂 Wabisabi: A filosofia japonesa de aceitar a transição e a imperfeição.
無心 Mushin: A não mente, a mente vazia, o desapego.

Palavras japonesas?

Desde criança, eu sempre fui apaixonado pela cultura japonesa.
Minha mãe vem de uma cidade no interior de São Paulo chamada Tupã, e mesmo não sendo descendente, lá foi aceita pela comunidade e aprendeu muito. Provavelmente aí, antes do meu nascimento, nasceu a paixão por essa cultura.
Sendo mais preciso, é uma parte específica da cultura. O Japão que ficou congelado na mente dos imigrantes que vieram para o Brasil. O Japão anterior à Segunda Guerra, anterior à influência americana e ocidental pós 1945. O Japão feudal, que vai muito além dos filmes de aventura. O Japão de arte, música, monges, samurais. A estética que influenciou até Van Gogh, a filosofia de vida que impacta tantos até hoje.

Ponte na Chuva por Vincent van Gogh (estudo da obra homônima de Hiroshige) https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=13523165

Desde pequeno tive interesse por estratégia, e o estudo da estratégia me levou aos grandes pensadores orientais. Monges como Soho Takuan, Samurais como Miyamoto Musashi, Yagyu Munemori e Ieyasu Tokugawa. Além da estratégia, suas vidas trazem diversos aspectos interessantes nos dias de hoje, inclusive como manter a paz em momentos de stress.
E outra coisa que me encanta é a forma de manter esses ensinamentos vivos até os dias de hoje. Grandes mestres de diversas artes trataram de colocar dentro delas um pouco do espirito do Japão, e elas chegaram até nós. Artes como o Ikebana, a Cerimônia do chá, ou artes marciais como Judô, Karatê, Aikido, Kendo, Naginata, cada uma trás um pouco do Japão.

Voltando às palavras

Mushin é um conceito conhecido dos artistas marciais. O monge Soho Takuan exemplifica de maneira esplêndida sua aplicação: Se em uma luta você prestar atenção em qualquer coisa, você deixa de prestar atenção no resto. Assim, estando atendo aos olhos do adversário você não vê a mão, e atento à mão não vê os olhos… e perde.
O Mushin é o oposto disso. Você está com a mente vazia, como um lago calmo. E qualquer pedra que caia no lago, você sabe onde caiu, consegue ver as ondas. Falar é bem fácil, fazer… aí fica bem mais difícil. Mas em momentos críticos, esse vazio pode ser mais importante do que a própria técnica, do que tudo que você treinou a vida inteira. Afinal, uma distração, e tudo se vai. Esse é o Mushin nas artes marciais. Mas o conceito vai muito além disso. Esse desapego em relação a pontos específicos para observar o todo se mostra também no kintsugi, num reflexo mais amplo contemplando a vida, como veremos a seguir.

Wabisabi é um conceito curioso para quem conviveu com a cultura japonesa recente. A busca pela perfeição é constante no povo japonês, e o imaginario ocidental reforça isso, de produtos a pessoas.

Porém, como sempre falo com meus amigos, expressões como Gambare (se esforce) e Ishou Ken Mei (coloque sua alma, ou traduzindo diretamente, alma na espada) dizem pra gente buscar a perfeição, e não exatamente ser perfeito. Mas não necessariamente foi essa a interpretação cobrada pela sociedade ou pelos nossos pais, em especial após a segunda guerra mundial.
Wabisabi, de certa forma, é o oposto disso. Fala de aceitar as imperfeições. Aceitar as transições, o que ocorre, e que as coisas mudam.

E por fim o tema deste texto, que descreve o início de minha jornada por essa arte: Kintsugi significa emendar com ouro. Objetos não são descartáveis. Talvez por influência xintoísta, no Japão isso seja mais claro. Cada objeto tem sua história. E a história não se acaba quando o objeto quebra. Impossível falar disso e não pensar em quantas vezes o próprio Japão “quebrou”, das guerras internas nos períodos dos samurais até a Segunda Guerra. E essa arte se mantém atual pois nós também quebramos. Muitas vezes não vemos, mas quebramos. E o que gostaríamos de fazer quando quebramos, que não seja nos jogarmos na lata do lixo? Restaurar né? Consertar e fingir que nada aconteceu.
Voltando pras artes marciais, se eu me machuquei, quebrei algo, quero que a dor passe rápido pra voltar a treinar, e que não fique marca estética nenhuma. Marcas são feitas. E pensando em nosso espírito, nossa vida, se algo dá errado, queremos logo esquecer. Não incomodar ninguém, varrer as cicatrizes para debaixo do tapete… melhor, colar da melhor maneira possível pra que ninguém perceba.
O kintsugi é bem diferente disso. Ele não emenda para que a cicatriz desapareça. Ele refaz a cicatriz e a transforma. O Japão não tentou esquecer Hiroshima e Nagasaki, inclusive porque essa cicatriz é essencial para que isso não se repita em nenhum lugar do mundo. Em nossas vidas, é muito difícil desver, desviver, esquecer episódios marcantes. Mas voltando ao Mushin, ainda que eles estejam ali, eles não podem prender nossa mente. Voltando ao Wabisabi, não é porque foram imperfeitos que vamos apagá-los, podemos conviver com eles. E seguindo com o Kintsugi, essas quebras podem ser transformadas em arte, deixando a peça mais bela, mais autentica. Uma obra de arte com marcas que fazem parte da sua história, e por isso trazem uma beleza e uma vida sem igual.

E assim, começo aqui a contar a jornada e reflexões da minha primeira experiência com Kintsugi. Vou dividir ela em 3 partes: A quebra, o Polimento e a Emenda.

A quebra

Kintsugi — Porcelana Quebrada por Christian Zambra

A quebra é imperfeita, ninguém controla a quebra. Na verdade tentaram controlar. Dizem que após as primeiras obras de Kintsugi ficarem populares, alguns colecionadores deliberadamente quebraram seus vasos para poder colar com ouro. Porém isso foge da essência. O Kintsugi é a emenda das cicatrizes, as cicatrizes contemplam a história escrita naquele vaso. Mas que história?
Eu sinceramente não lembro como quebrei o meu. E isso não fez diferença nenhuma no processo. O que fez é que eu queria consertar. Quebrei sem querer, e guardei os cacos, os pedaços, as peças, pq sabia que um dia ia consertar, e porque ele era importante pra mim. Era importante porque nunca vi outro igual, porque havia sido feito a mão e comprei diretamente do artesão em uma feira muuuuuuito tempo atrás, e eu achava bonito. Sabia que um dia iria consertar.
Assim somos nós. Não conseguimos controlar a quebra. Tantas coisas acontecem em nossas vidas, lentamente, abruptamente, incontrolavelmente. Não decidimos em que bairro, em que país, em que vizinhança vamos nascer, e essas influencias seguem conosco nos formando. Não escolhemos quando vamos nos machucar, cair do escorregador no parque, fraturar algo praticando esportes, mas eventualmente vamos e pode ser que fiquem cicatrizes. E não escolhemos as decepções que teremos com amizades, relacionamentos, empregos, estudos. Falhas. Acidentes. Frustrações. Demissão. Layoff. Decepções. Abandonos. Perdas. Tudo isso faz parte da vida, e deixa cicatrizes. Maiores, menores…. a cicatriz depende do incidente e do vaso.
No meu especificamente, uma coisa me fez refletir: A fratura era perfeita. Se eu juntasse os dois pedaços novamente, praticamente não apareceria a fratura. Porém eu pessoalmente saberia que está lá, e (como nerd engenheiro) sei que aquele ponto possivelmente ficaria mais frágil pela cola, pela forma de colar necessária para que eu tentasse não mostrar a aparente fratura. É, cada vez mais a porcelana se parece conosco, com os gatilhos que varremos para debaixo do tapete, e fragilizados, de vez em quando veem à tona.

O polimento

Kintsugi — Polimento da Porcelana por Christian Zambra

Essa foi a parte mais surpreendente do Kintsugi. Era necessário polir a quebra, polir a cicatriz. Quem gosta de merxer em ferida? Quem ali lembra da primeira vez que se cortou e teve que levar pontos? Lavar? Ou ainda…(entregando a idade) quem aqui lembra de um antisséptico que doía muito, chamado Merthiolate? Dói mexer em uma cicatriz.

E uma coisa que me chamou muito a atenção: O polimento é feito com uma lixa de diamantes.

Eu já achava curioso e surpreendente utilizar na emenda um material mais nobre que a própria cerâmica (no Kintsugi tradicional se utiliza ouro), mas descobri que um material mais nobre ainda é utilizado para ajustar a cicatriz, transformá-la em arte. O polimento é essencial para a aderência da emenda, para a forma que esta tomará. Assim como nas nossas cicatrizes. Precisamos cuidar das feridas para que não infeccionem, refletir sobre os acontecimentos para controlar não o que ocorreu, mas o que vamos fazer com isso. As memórias são nossas e cabe a nós transformá-las. E aqui uma parte difícil, como ocorre nas artes marciais: É muito difícil ir contra a força que vem em sua direção, assim como é difícil simplesmente controlar alguém. Técnicas como as do Aikido buscam uma compreensão e harmonia tão grande com o adversário que você é capaz de controlar a direção da força dele, e só assim é possível derrubá-lo. Assim também devemos compreender profundamente a cicatriz para fazer o curativo, a dor para trabalhar ela, e a quebra para lixar direito. Dependendo da força e da direção, você acaba quebrando mais a porcelana, onde não queria. É preciso muita paciência, muita concentração, muito controle e muita reflexão nesse trecho. É um momento de grande aprendizado.

A emenda.

Kintsugi — Emenda da Porcelana por Christian Zambra

Essa é a parte mais demorada e que exige mais paciência. A emenda não é feita de uma vez. Primeiro você reconstrói a ligação com argila. Assim como a pele e os ossos fraturados se regeneram, assim como passadas as esperiências nossas lembranças e nossas compreensões do que aconteceu vão se formando. Essa emenda ainda é feita no centro da fratura, no ponto mais próximo. Eu tentei adaptar com o que tinha em casa, e sim, usei super bonder bem no centro e argila em volta, com medo de que quebrasse. 😱 Depois de 24 horas, começa a parte de tornar a cicatriz em arte.

Não, eu não coloquei ouro na minha peça! 🚫💸 Andei a cidade inteira para achar tintas cor de ouro e cor de ouro velho. E aparentemente funcionou. Eu passei 3 camadas de tinta misturada com argila. A primeira tinta clara com uma porção significativa de Argila, a segunda com tinta mais escura e menos argila, e a terceira com tinta mais clara novamente. A tinta clara era cor ouro, e a mais escura era ouro velho. Entre cada passagem, tive que esperar 24h, e após cada secagem tirar o excesso, tirar as fita que coloquei pra evitar pintar lugares errados, etc. E por fim, coloquei laca, e esperei uma semana até a laca secar.

O processo é demorado, e assim são nossas cicatrizes. Trocamos o curativo, tomamos anti-inflamatórios, conversamos, escrevemos, refletimos, fazemos tratamentos, cada vez que mexemos é como uma nova camada de tinta. Pode piorar, mas pode melhorar, tudo são experiências que vão se acumulando. O importante é ter um direcionamento, um direcionamento positivo. O polimento e as fitas davam o direcionamento da arte que queria ao final. Não saiu perfeitamente como queria, mas essa arte trata exatamente da imperfeição.

Conclusões

Jardim Zen por Christian Zambra

E assim, coloquei mais um objeto em meu jardim zen.

Talvez eu tenha levado a questão da imperfeição ao pé da letra 😅 Mas foi minha primeira tentativa, auto didata, no tempo que deu… meu primeiro contato com o Kintsugi.

E, talvez mais importante que a peça, essa foi minha experiêcia, minha vivência e minha reflexão sobre o Kintsugi. Foi meu primeiro contato com essa arte incrível, que exige paciência, cuidado, planejamento e vontade. Ela trás uma visão diferente sobre a beleza e a perfeição, que a meu ver se aplica plenamente às nossas vidas. Somos humanos, e por vivermos teremos sempre cicatrizes. Elas contam a nossa história. E podemos sim transformá-las em obras de arte, e fazer com que essas marcas de nossos percauços façam uma vida até mais bela do que a vida perfeita do vaso que nunca quebra. Nunca quebra pois não se arriscou, não viveu o bastante. Nós sim quebramos e nos reconstruimos, mais belos, mais fortes, mais experientes e mais vivos.

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Christian Zambra
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Passionate to learn; believes that new products are made to change people’s life for better; Fuzzy AND Techie :) B. Engineering & Advertising. Alma Matter: USP