gandeia — QUEM SABE AMANHÃ (2021)

Matheus Candido Pareschi Soares
Produtora Mente Vazia
4 min readJul 16, 2021

QUEM SABE AMANHÃ é o segundo disco do gandeia, projeto musical do poeta, cantor, ator e compositor Carlos Rafael. É um disco criado durante o ano pandêmico de 2020 e reflete seus desdobramentos dentro da subjetividade do artista, as histórias, momentos compartilhados e influências que reverberaram durante os meses de confinamento. As canções são gravadas em um interessante mix de colaboração e do fazer independente, digo isso porque apesar das muitas participações no disco, grande parte do instrumental é gravado no quarto do gandeia. Ainda se tratando da natureza geral dos fonogramas é interessante ressaltar como a mixagem se torna parte estendida das músicas, utilizando as possibilidades tecnológicas como parte da criação artística.

Pra quem tem com QUEM SABE AMANHÃ o primeiro contato com o trabalho do gandeia pode-se surpreender com o grau de experimentalismo nas composições, por isso acho importante ressaltar que antes desse lançamento o artista já havia disponibilizado músicas com o pé enfiado na música ambiente, na música eletrônica. É interessante o dialogo das canções durante o disco, repetições de frase, letras em outros arranjos e as transições entre faixas. As facetas de gandeia, que passam pelo jazz, MPB, música ambiente, são expostas em sinceridade durante os 41 minutos do disco.

O álbum começa com uma faixa de alto astral contagiante, “Risadas Valsando Divas” se assemelha com as canções do Bruno Pernadas, que mistura os instrumentos de maneira suave com um arranjo meio jazzístico. A canção “eu y meu aMOR fazendo o Rolê” tem uma atmosfera ardente de desejo, o sintetizador me remete as criações do Thundercat. A voz do Lutiano Nascimento pra mim atribuiu à canção um feitiço hipnotizador, como um Ney Matogrosso contemporâneo. É como se a faixa fosse muito maior do que o tempo que ela tem, os seus três minutos passam voando. O trompete do Pedrinho Costa dialoga com os vocalize do Lutiano de maneira muito orgânica. A composição realmente é fiel à esses encontros que fazem do rolê uma especie de pré-destinação. A faixa enigmática “13RCEIRO OlhO da Borboleta” adiciona uma pegada de um rock-pop no disco e, para mim, fecha essa parte inicial do disco que tem uma pegada mais palatável.

“fale TUDO que tem pra Dizer” é uma prova do dinamismo do gandeia, é uma faixa meio spoken word que apresenta um sentimento que reflete a admiração e as memórias que são evocadas pela chamada música de vanguarda. É um discurso envolvente que realmente faz-te querer chegar a esses “estados de consciência elevado” que “Reich, Meredith, Uakti Smetak” podem levar alguém. A canção vai crescendo com a adição de outros instrumentos e com a participação precisa do Claudio Caldeira no Saxofone Tenor.

Tem uma sequência no disco que compreende da faixa 6 até a faixa 9 que tratam mais diretamente das questões contemporâneas, como a pandemia e nossas relações com as máquinas e seu universo. Acho muito encorajadora a canção “100 S!MPATIA” que mistura um free jazz com uma pegada mais indie pop e que reflete o estado em que a juventude procura se desenvolver, apesar das façanhas de quem nos tenta encapsular, gandeia reflete de maneira graciosa quando canta “Jogue sua TV no lixo deixa disso vai viver/Lute a luta como pode Lute a luta como você”; o que vejo aqui é um empurrão pro ouvinte procurar se conhecer e lutar por si — num sentido de querer o melhor e para isso ser preciso um certo auto conhecimento. “Uma Geração Virtual” que conta com a participação de Amanda Mara e Nico Selves é em si uma referência ao processo de gravação da faixa, que acontece no âmbito internacional, e com um tom alegre leva-nos num passeio curto e intenso.

“era Sumiço” traz uma atmosfera suave e latina, me lembra a reflexão de uma noite só onde o reflexo se torna um instigador de si e dos outros que existem dentro de si. A partir dessa faixa e até a antepenúltima as participações saem de cena e gandeia apresenta mais seu lado experimental e da música ambiente, sendo que as faixas “Urubu Rei comendo os desTROÇOS” e “Los Ojos Mariposas” são as que mais dialogam nessa estética. As canções vão ganhando um tom mais de registro sonoro, como se tivessem o intuito de servir de diário mesmo. Um exemplo é a faixa “ARYSAThUR 7X33”, que brinca com a musicalidade das entoações da fala. A faixa que termina a jornada pelas sensibilidades do gandeia e suas parcerias, é a composição “Eu Dei Uma Piradinha” que conta com a participação (na composição e na interpretação) do Lutiano Nascimento e já é uma boa conhecida minha.

Um trabalho que ultrapassa o enclausuramento da pandemia e dá voz a diversas sensibilidades e impressões. Cada participação acontece em grande atino com as intenções do gandeia, é um projeto colaborativo extremamente pessoal. O trabalho do Carlos é realmente muito dinâmico, conseguir cunhar um trabalho multifacetado durante esses tempos tenebrosos é um ato de coragem e amor a música e as artes. Vou esperar curioso para ouvir os processos/caminhos que o artista trilhará.

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