SCUEPDT — Sophia Chablau e uma Enorme Perda de Tempo (2021)

Matheus Candido Pareschi Soares
Produtora Mente Vazia
6 min readApr 21, 2021

Foi me fechando no quarto escuro e com o fone no talo que acabei me movimentando numa dança catártica ao som de Delícia/Luxúria, o single chefe do disco de estreia da banda Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo (SCUEPDT). O entusiasmo que me invadia era genuíno, deformava o meu ser, e naqueles instantes a excitação pelo tão aguardado longa duração só aumentava.

Conheci a banda pela canção Idas e Vindas do Amor (indicação do Lucas Bigas) e desde então fiquei sedento por mais. A minha sede, temporariamente, foi morta por este disco que evoca as mais diversas sensações. Não é fácil estabelecer um gênero musical que englobe o trabalho da banda paulistana, mas arrisco o termo neo-tropicalismo com um post-rock. A maestria com que os músicos passeiam entre as paisagens sonoras é notável, somado a esse domínio as transições e pausas certeiras entre as músicas dão forma a um todo que vai do frenesi a contemplação. A duração das faixas, que no princípio causou-me uma certa estranheza, com o passar do tempo me parece mais como um motivo de atração. O disco faz você retornar pra ele, as atmosferas e sentimentos propostos são sinceros e bem intencionados.

O grupo é formado por Sophia Chablau (voz, guitarra), Téo Serson (baixo), Theo Ceccato (bateria) e Vicente Tassara (guitarra, teclados). O disco conta com a produção musical da multi-artista carioca Ana Frango Elétrico, Gui Jesus Toledo como responsável pela engenharia de áudio, produção executiva pela simpaticíssima Francesca Ribeiro, a autora da capa foi a designer Maria Cau Levy e a foto de Biel Basile.

Pop Cabecinha é a faixa que dá início à jornada de 22 min, seu título serve para exemplificar o trabalho do grupo que com todo o experimentalismo ainda se mantém num espírito radiofônico. Para mim esta é a canção mais tropicalista do disco, fácil de imaginar a Gal soltando a voz nesse som; o baixo me remete demais aos arranjos do Duprat, a guitarra me lembra os gemidos de Lanny Gordin no Legal (Gal Costa, 1970) e tem momentos que exemplificam a influência de shoegaze. Canção que passa por reflexões que buscam o sentido no ouvinte — será que somos mesmo grandes interruptores de luz? A letra polemiza a dizer que sopa é luxo só, visto que muita gente diz que sopa nem refeição é. O arranjo corre para uma finalização quebradeira enquanto Chablau tensiona aos berros com os instrumental em explosão.

São 5 segundos de silêncio que preparam a chegada de Se Você. Anunciada por uma nota pedal, da singela viola-de-arco, a voz amanteigada de Sophia se apresenta inicialmente acompanhada apenas pelo baixo, versando sobre inquietações de quem se vê contemplado por uma paixão incompreensível. Acho lindo como o reverb no canto vai ganhando tamanho até chegar ao momento em que a banda preenche o suspense incitado pela letra com instantes que me remetem a parte da canção Hard Fellings (Lorde, 2017). São instantes atmosféricos, uma transição que demonstra o domínio da banda em migrar da experiência radiofônica para o experimentalismo.

A balada do disco, Fora do Meu Quarto, já me serviu de momentos muito sinceros. Apesar do teor romântico o eu-lírico apresenta reflexões que dizem muito desse momento de puro caos que se abate sobre a humanidade nos últimos tempos, é inegável que cada um tem suas maneiras de se conduzir ao estado de paz. A canção caminha para um zênite lisérgico quando o arpejo de baixo leva-nos para dentro da música.

Se Eu Fiz pra Você uma Não-canção Eu Não Podia é um momento singelo no disco, um flerte com o folk. A melodia assobiada e depois cantada é bem intuitiva, fica gravada na cabeça. Uma não-canção é com o que a canção flerta, a impossibilidade anunciada no título da faixa é a verdade da composição. Ela nasce pra logo morrer, deixar de ser canção.

O momento mais enigmático do disco se dá na faixa que o grupo paulistano mais emerge no shoegaze. Deus Lindo, tratando da temática lírica, se assemelha às histórias de Maldoror (de Isidore Ducasse) e seu espírito anti-clerical; a letra coloca a figura do divino em um plano do cotidiano e do grosseiro. A canção possui uma estrutura caótica, uma sensação de indefinição que segue até o grito de “PENETRAÇÃO” que invade o arranjo com torrentes de som distorcido que dão início a uma seção energética que provoca danças descontroladas.

A bossa-novística e perspicaz Hello é uma brincadeira de gente bilíngue. Momento que sucede a explosão da faixa anterior com devaneios e sensações semelhantes a quando se bebe de mais e não é possível falar outra língua além da língua estrangeira. O coral surge como raios suaves de sol, com um tremulo na medida. É interessante essa proposição no final da canção, apesar de toda essa perspectiva que enxerga as maldades do imperialismo, não dá pra fugir daquilo que vêm dos E.U.A e nos comove — a sensação que vem independente da pátria. Exemplos pra mim dessa esperteza da Sophia são:

“I don’t know why Elvis canta love me tender/If is a comida de christmas”

“I love brazilian sotaque/I love my jeito de be”.

Já tinha ouvido Debaixo do Pano em algumas gravações de shows da banda, é uma faixa cheia de bom humor e uma levada otimística (tanto na letra, quanto no instrumental).Ela tem um groove de black rio, um ‘Q’ do samba-jazz do Jorge Ben dos ’60. A banda pra mim encontra um tom irreverente nessa canção, propõe um passeio dançante por São Paulo/Rio Janeiro extremamente envolvente. Vejo a canção como um comentário holístico, que prega o pertencimento no mundo como algo a ser curtido. Num solo catártico de sax um coro nos diz que tudo pode ser parte do universo. PS: a bateria que brota no pan direito antes do solo é primorosa, genial.

A anti-penúltima faixa é a que mais vejo próxima às canções de Itamar Assumpção, seja pelo groove, pelas convenções no arranjo ou pelo final abrupto. O solo genial de Lucinha Turnbull se encaixa perfeitamente na atmosfera do disco, muito sensível. A letra é uma bela forma de interpretar o fazer estético, as Moças e Aeromoças são o que A.J Greimas chama de guizo — o despertar da criatividade.

Delícia/Luxúria fecha o disco despertando em mim a vontade de ouvir todas essas canções no calor do ao vivo, com o corpo sendo tomado fisicamente pelas frequências do som. É uma belíssima canção pop, Sophia canta de uma maneira que me lembra Caetano. A atmosfera me surge como uma versão com bem mais tesão do indie rock do tempo de Is This It (The Strokes, 2001). O refrão carrega realmente uma energia avassaladora, uma coisa bem difícil de conter.

Por fim me restam mais elogios para a produção musical impecável, trazendo coesão em todos os aspectos do som seja na mixagem, masterização, engenharia de som, arranjo e interpretação. Só fica a vontade de ver quais caminhos o grupo vai trilhar, visto a grande maturidade que já possuem em um primeiro disco.

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