Ilustração usada na publicação original pela LA Review of Books.

(I/III) "Neo-feudalismo: o fim do capitalismo?" de Jodi Dean

Ariel Cardeal
Professional Time Traveler
8 min readMar 27, 2021

--

Iniciei a tradução deste artigo da pesquisadora e professora Jodi Dean, publicado em Maio de 2020 no blog da LA Review of Books.

O texto original está dividido em três partes, e fiz a tradução de forma faseada também. Alguns conceitos usados no artigo que foram emprestados da Física e outras ciências contam com hyperlinks que podem auxiliar a interpretação do texto.

A tradução da parte 2(II/III) você pode encontrar aqui:

A tradução da parte 3(III/III) você pode encontrar aqui:

Parte I/III

Em seu livro "O Capital Está Morto" (Capital Is Dead), a escritora McKenzie Wark questiona: E se nós não estivermos mais no capitalismo, mas em algo ainda pior? A pergunta é um sacrilégio, provocativa e inquietante, pois força os anti-capitalistas a confrontarem um apego não reconhecido ao capitalismo. Se era esperado que o comunismo viesse após o capitalismo, e este não está aqui, isso significa que ainda estamos no capitalismo? Quando deixada por questionar, esta premissa impede uma análise política. Ao deixarmos de lado o determinismo histórico estrito, deveríamos considerar a possibilidade do capitalismo ter se metamorfoseado em algo qualitativamente diferente. A pergunta de Wark convida a um experimento mental: quais tendências no presente indicam que o capitalismo está se transformando em algo pior?

Na década passada, o conceito de "neo-feudalismo" surgiu para nomear tendências associadas à extrema desigualdade, a precariedade generalizada, o monopólio de poder e mudanças em escala nacional. Elaborando a partir da ênfase do economista libertário Tyler Cowen sobre a permanência da desigualdade extrema na automatizada economia global, o geógrafo conservador Joel Kotkin visualiza o futuro dos EUA como uma servidão em massa. Uma subclasse sem propriedades irá sobreviver atendendo às necessidades de pessoas de alta renda como assistentes pessoais, personal trainers, babás, cozinheiros, faxineiros, etc. A única forma de evitar esse pesadelo neo-feudal é através do subsídio e desregulamentação das indústrias de alta empregabilidade que tornam possível o estilo de vida norte-americano, da casa suburbana e das rodovias — a indústria da construção civil, do petróleo, do gás, dos automóveis e do agronegócio corporativo. Ao contrário do espectro da servidão que assombrava Friedrich Hayek em seu ataque ao socialismo, Kotkin encontra o adversário dentro do próprio capitalismo. O mercado financeiro, a tecnologia e a globalização estão criando "uma nova ordem social que de alguma forma se assemelha mais à estrutura feudal — com suas barreiras muitas vezes intransponíveis à mobilidade social — do que a emergência caótica do capitalismo industrial." Neste imaginário liberal/conservador, o feudalismo ocupa um lugar de inimigo antes ocupado pelo comunismo. A ameaça da centralização e a ameaça à propriedade privada são elementos ideológicos que continuam os mesmos.

Vários críticos de tecnologia compartilham do argumento libertário/conservador sobre o papel da tecnologia na feudalização contemporânea, mesmo que estes argumentos não contemplem os combustíveis fósseis ou a vida no subúrbio. Em 2010 o guru da tecnologia Jaron Lanier já observava a emergência dos "camponeses" e dos "senhores" da internet, em seu livro "Você Não é Um Gadget" (You're Not a Gadget). Este tema tem ganhado notoriedade à medida que uma meia dúzia de empresas de tecnologia tem se tornado ainda mais ricas e exploradoras, tornando seus donos em bilionários às custas da mão-de-obra barata de seus trabalhadores, do trabalho não remunerado de seus usuários, e dos incentivos fiscais concedidos a estas empresas por cidades desesperadas pela geração de empregos. Juntas, a Apple, o Facebook, a Microsoft, a Amazon e a Alphabet (o nome da empresa dona do Google) são mais valiosas que qualquer país do mundo (exceto os Estados Unidos, a China, a Alemanha e o Japão). O impacto e a escala econômica destes super gigantes da tecnologia — ou, suseranos — é maior do que estes assim chamados “Estados soberanos”. O escritor e pesquisador Evgeny Morozov descreve a dominância destas empresas como “uma forma hiper-moderna de feudalismo.”

Funcionários da Amazon no Reino Unido. Fonte: "Amazon warehouse worker savages working conditions in Guardian op-ed"

O físico Albert-László Barabási explicou os processos que sustentam tal neo-feudalismo em sua análise da estrutura de redes complexas, ou seja, redes caracterizadas pela livre escolha, pelo crescimento, e por conexões preferenciais. Estes tipos de redes são aquelas onde as pessoas podem fazer conexões ou escolhas voluntariamente. Com isso, o número de conexões por cada site cresce ao longo do tempo, e as pessoas passam a gostar de coisas porque outras pessoas também gostam (o sistema de recomendações da Netflix, por exemplo, parte dessa premissa). A distribuição de conexões em redes complexas segue uma regra de poder em que o item mais popular geralmente tem o dobro de acessos ou conexões que o segundo mais popular, que por sua vez tem o dobro do terceiro mais popular e assim por diante, com diferenças insignificantes entre aqueles na cauda longa da distribuição da curva.

Exemplo de curva estatística de distribuição normal, também conhecida como moda ou "bell curve"

Esta situação em que o vencedor leva tudo (ou pelo menos a maior parte) é efeito do poder que a lei de potência* tem sobre uma distribuição estatística. Aquele que está no topo possui uma quantia significativamente maior do que aqueles que estão na base. A forma que a distribuição toma, então, não é uma curva de uma distribuição normal, com forma de sino; mas uma cauda longa — com alguns poucos bilionários, e um bilhão de trabalhadores precarizados. A estrutura das redes complexas convida à inclusão: quanto maior a quantidade de itens na rede, maiores serão as recompensas daqueles que estão no topo. Que também induz à competição — por atenção, por recursos, por dinheiro, por empregos — qualquer coisa que possa tomar a forma de uma rede. O que leva à concentração. Logo, o resultado da livre escolha, do crescimento e das conexões preferenciais é a hierarquia e distribuições das leis de potência em que aqueles no topo tem imensamente mais do que aqueles que estão embaixo.

Exemplo gráfico de um curva de "Cauda Longa"

A distribuição de leis de potência não são inevitáveis. Elas podem ser impedidas, mas requerem vontade política e poder institucional para implementação desta vontade. As políticas neoliberais do século XX, entretanto, ambicionaram por criar condições que facilitariam — ao invés de frustrar — os princípios da livre escolha, do crescimento e das conexões preferenciais.

Em seu livro “Globalistas: O Fim do Império e Nascimento do Neoliberalismo” (Globalists: The End of Empire and the Birth of Neoliberalism), o historiador Quinn Slobodian documenta a estratégia neoliberal de minar a autoridade dos Estados-nação sobre a economia com a intenção de promover o avanço do comércio global. Ameaçados pelas demandas organizadas das novas nações pós-coloniais do Sul Global por reparações, soberania sobre seus próprios recursos naturais, preços dos commodities estabilizados e a regulamentação de corporações transnacionais, os neoliberais nos anos 1970 buscaram "contornar a autoridade dos governos nacionais." Eles advogavam por uma abordagem em vários níveis à legislação do Estado, um federalismo competitivo que deixaria o capital disciplinar os governos enquanto este capital ficaria imune ao controle democrático. Nas palavras de Hans Willgerodt, um dos neoliberais dos estudos de Slobodian, o novo federalismo competitivo requeria que o Estado "compartilhasse sua soberania com as estruturas federais abaixo de si e vinculasse a si mesmo à uma comunidade jurídica internacional".

Ao invés de enfocar nas origens do neoliberalismo, a cientista política Albena Azmanova demonstra em seu livro “Capitalismo no Limite” (Capitalism on Edge) os caminhos que o neoliberalismo levou, na prática, a um novo capitalismo de precariedade. Leis impulsionando a desregulamentação e o livre comércio global tiveram resultados inesperados. O mercado global se transmutou de "economias nacionais integradas por acordos comerciais em uma rede de produção transnacional". Por conta da contribuição obscura e incerta destas redes para as economias nacionais, manter a competitividade destes países se tornou "uma preocupação legislativa prioritária". A competitividade substituiu a competição e o crescimento como um objetivo do Estado, levando os países a priorizar não um jogo nivelado e o desmanche de monopólios, mas "a ajudar atores econômicos específicos — aqueles que se posicionarem melhor para uma boa performance na competição global por lucro". Ao atestar como o setor privado sempre se beneficiou de fundos públicos, Azmanova põe ênfase na nova forma do capitalismo onde "a autoridade pública escolhe a dedo as empresas a quem serão dados estes privilégios". Os Estados não intervêm para quebrar monopólios, eles os produzem e os premiam.

A concentração de monopólio, a extrema desigualdade e a sujeição do Estado ao mercado transformaram a acumulação de tal forma que agora ela acontece tanto por meio de aluguel, dívida e força quanto por meio da produção de mercadorias. Azmanova aponta que a privatização de setores da economia relativamente imunes à competição — como as fontes de energia, estradas e banda larga — deu aos seus donos "o status privilegiado de rentistas". Globalmente, nas indústrias do conhecimento e da tecnologia, a renda gerada pelos direitos sobre a propriedade intelectual excedem os rendimentos vindos da produção de bens. Nos Estados Unidos, por exemplo, os serviços financeiros contribuem mais para o PIB do país do que a contribuição gerada pela manufatura de bens de consumo. O capital não precisa ser reinvestido na produção, e portanto ele é reabsorvido e redistribuído como rentabilidade. Estes processos de valorização têm se extendido para além das fábricas, para dentro de ciclos instáveis, complexos e especulativos, cada vez mais dependentes da vigilância, da violência e da coerção.

O capitalismo está transformando a si mesmo no neo-feudalismo.

--

--