(II/III) "Neo-feudalismo: o fim do capitalismo?" de Jodi Dean

Ariel Cardeal
Professional Time Traveler
11 min readMay 15, 2021

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Iniciei a tradução deste artigo da pesquisadora e professora Jodi Dean, publicado em Maio de 2020 no blog da LA Review of Books.

O texto original está dividido em três partes, e fiz a tradução de forma faseada também. Alguns conceitos usados no artigo que foram emprestados da História e Economia contam com hyperlinks que podem auxiliar a interpretação do texto. Além disso, adicionei em forma de comentário grifado uma nota de tradução sobre a escolha do termo "Periferização" para o termo "Hinterlandization" usado pela autora.

A tradução da parte 1 (I/III) você pode encontrar aqui:

A tradução da parte 3 (III/III) você pode encontrar aqui:

Parte II/III

O neo-feudalismo não implica que o capitalismo contemporâneo, conectado e comunicativo, reproduza todas as características do feudalismo Europeu. Ele não reproduz. Na verdade, como os historiadores tem demonstrado com sucesso, a própria ideia de que tenha existido um único feudalismo Europeu é uma ficção. Feudalismos diferentes se desenvolveram pelo continente em resposta a diferentes condições. A análise do capitalismo contemporâneo sob a ótica de suas tendências feudalizantes joga luz sobre uma nova estrutura socioeconômica com quatro características entrelaçadas: a soberania repartida; novos camponeses e senhores feudais; a periferização e o catastrofismo.

Soberania repartida

Os historiadores Perry Anderson e Ellen Meiksins Wood falam da repartição da soberania como uma das principais características do feudalismo europeu. A sociedade feudal emergiu como uma forma de administração do Império Romano que "deu espaço para uma colcha de retalhos de jurisdições em que as funções do Estado eram fragmentadas verticalmente e horizontalmente". Foram feitos vários tipos de arranjos locais, incluindo relações contratuais entre reis e senhores feudais e entre senhores feudais e vassalos, como forma de ampliar a administração regional. A arbitragem substituiu o Estado de Direito, e a linha que separava a legalidade da ilegalidade ficou ainda mais tênue. A autoridade política e o poder econômico se misturaram conforme os senhores feudais lucravam sobre os lavradores por meio de uma coerção legítima. Legítima em parte, porque eram os senhores feudais que decidiam sobre quais leis se aplicavam aos lavradores sob sua jursidição. De acordo com Ellen, "como efeito, foram combinados a exploração do trabalho privado com o papel da administração pública, jurisdição e aplicação das leis."

No neo-feudalismo, o caráter político da sociedade reafirma a si mesmo. Instituições financeiras globais e plataformas de tecnologia digital usam a dívida para redistribuir a riqueza dos mais pobres para os mais ricos no mundo. Os Estados promovem e protegem corporações privadas específicas. O poder político é exercido não somente com, mas na forma do poder econômico, através de impostos, multas, penhora de bens, apreensão de ativos, licenças, patentes, jurisdições e fronteiras. Ao mesmo tempo, o poder econômico blinda aqueles que o manejam, mantendo-os fora do alcance da legislação. Cerca de 10% da riqueza global é mantida em contas de paraísos fiscais para evadir impostos. Cidades e estados se relacionam com a Apple, Amazon, Microsoft, Facebook e Google/Alphabet como se estas corporações fossem elas mesmas Estados soberanos — negociando com elas, tentando atraí-las, e cooperando com elas em seus próprios termos. Municípios sem dinheiro usam elaborados sistemas de multas para expropriar dinheiro diretamente das pessoas, sendo os mais pobres os mais impactados. Em seu livro "Punição sem Crime" (Punishment Without Crime), a especialista em direito penal Alexandra Natapoff documenta o escopo dramático da lei de contravenção no já enorme sistema carcerário dos EUA. As pessoas pobres, desproporcionalmente pessoas não brancas, são presas sob falsas acusações e convencidas a se declararem culpadas para evitar o tempo de cadeia que poderiam pegar caso contestassem as acusações. E não apenas a confissão fica registrada em seus nomes, mas ficam vulneráveis a multas que podem gerar ainda mais taxas e cobranças caso as deixem de pagar. Nós demos uma olhada neste sistema de ilegalidade jurídica e injusta administração da justiça quando aconteceram as revoltas em Ferguson, no Missouri, que se seguiram após o assassinato de Michael Brown: "A corte municipal e o aparato policial tomaram milhões de dólares de sua população afro-americana de baixa renda." A polícia foi instruída a "fazer prisões e emitir mandados com o objetivo de gerar rendimentos." Assim, como seguidores de senhores feudais, eles usam da força para extrair valor das pessoas.

Novos camponeses e senhores feudais

As relações feudais são caracterizadas por uma desigualdade fundamental que permite a exploração direta dos camponeses pelos senhores feudais. Perry Anderson descreve os monopólios de exploração, como os moinhos de água, que eram controlados pelos senhores feudais: os camponeses eram obrigados a ter seus grãos moídos no moinho de seu senhor, um serviço para o qual eles tinham de pagar. E não apenas os camponeses ocupavam e cultivavam as terras que não eram suas, mas eles viviam sob condições em que o senhor feudal era, como disse Marx, "o gestor e senhor do processo de produção e do processo de toda vida social." Diferente do capitalista, cujo lucro vem do excedente de valor gerado pelos trabalhadores assalariados por meio da produção de commodities, o senhor feudal extrai valor por meio do monopólio, da coerção e do arrendamento.

As plataformas digitais são os novos moinhos d'água, seus donos bilionários são os novos senhores feudais, e seus milhares de trabalhadores e bilhões de usuários são os novos camponeses. As empresas de tecnologia empregam uma parte pequena da força de trabalho, mas seus efeitos tem sido enormes, transformando indústrias inteiras ao redor de aquisição, mineração e desenvolvimento de dados. As forças de trabalho cada vez menores são um indicador da tendência neofeudalizante da tecnologia digital. Hoje, a acumulação de capital se dá menos pela produção de commodities e pelo trabalho assalariado do que pela oferta de serviços, arrendamentos, concessão de licenças, cobrança de taxas, pelo trabalho não remunerado (muitas vezes sob a máscara de colaboração), e pelos dados, tratados como um tipo de recurso natural. Sempre posicionando a si mesmas como intermediárias, as plataformas digitais dão as bases para as atividades de seus usuários, dão as condições de possibilidade para as interações acontecerem. O Google torna possível encontrar informações num ambiente informacional extremamente denso e em constante mudança. A Amazon nos permite localizar itens, comparar preços e realizar compras tanto de empresas conceituadas como de vendedores desconhecidos. A Uber permite que estranhos compartilhem viagens de carro. O AirBnb faz o mesmo para casas e apartamentos. Todos estes negócios são viabilizados por uma imensa geração e circulação de dados. As plataformas digitais não somente dependem dos dados, elas também produzem mais dados. Quanto mais as pessoas as usam, mais efetivas e poderosas elas se tornam, transformando — finalmente — o ambiente do qual elas também fazem parte.

As plataformas são duplamente extrativistas. Diferente do moinho de água, em que os camponeses não tinham outra opção senão usá-lo, as plataformas não somente se posicionam de uma forma que seu uso é basicamente necessário (como bancos, cartões de crédito, telefones e estradas), mas seu uso também gera mais dados para seus donos. Os usuários não somente pagam pelo serviço, mas as plataformas também coletam os dados gerados pelo uso do serviço. A plataforma na nuvem extrai renda e extrai dados, como se fossem metros quadrados de terra. Os exemplos mais extremos são da Uber e AirBnb, que extraem renda sem ter nenhuma propriedade, contando com uma força de trabalho terceirizada que é responsável por sua própria manutenção, treinamento e meios de trabalho. Seu carro não é para o transporte pessoal. É para fazer dinheiro. Seu apartamento não é um lugar para viver, é algo para alugar e fazer renda extra. Itens de consumo são reconfigurados como meios de acumulação de uma forma que a propriedade pessoal se torne um instrumento para a acumulação de dados e de capital dos senhores feudais da plataforma, Uber e AirBnb. Esta tendência a tornar-se camponês, ou seja, de tornar-se alguém que é dono dos meios de produção mas cujo trabalho aumenta o capital do dono da plataforma, é neo-feudal.

Os gigantes da tecnologia são extrativistas. Como tantas outras demandas tributárias, suas evasões fiscais desviam o dinheiro de comunidades. Sua presença direciona o aumento dos preços dos aluguéis e do mercado imobiliário, acabando com apartamentos a preços acessíveis, expulsando pequenas empresas e a população de baixa renda. Em seu estudos sobre o "capitalismo de vigilância", a professora e pesquisadora Shoshana Zuboff traz à tona uma nova dimensão do feudalismo tecnológico — o serviço militar. Como na relação dos senhores feudais para com os reis, o Facebook e o Google cooperam com Estados poderosos, compartilhando informações que estes países são legalmente barrados de coletar eles mesmos. No geral, a dimensão extrativa das tecnologias de rede agora é generalizada, intrusiva e inevitável. O presente não é literalmente uma era de camponeses e senhores feudais. Mesmo assim, a distância entre ricos e pobres está aumentando, auxiliada por uma arquitetura jurídica diferenciada, que protege as corporações, seus donos e proprietários enquanto encarcera e empobrece a classe baixa e trabalhadora.

Periferização

Um terceiro aspecto do neo-feudalismo é a espacialidade associada ao feudalismo, em que há centros frequentemente ativos e bem protegidos, rodeados por zonas rurais e periferias desoladas. Nós também podemos caracterizar isto como uma separação entre cidade e interior, zonas rurais e municipais, comunas urbanas e seu interior ao redor, ou ainda mais abstratamente, entre uma cidade murada do lado de dentro separada do lado de fora, uma divisão entre o que é seguro e o que é arriscado, quem é próspero e quem é desesperado. Wood fala que as cidades medievais eram essencialmente oligarquias:

"com classes dominantes que enriqueceram em decorrência do comércio e prestação de serviços financeiros para reis, imperadores e papas. Coletivamente, eles dominavam o interior ao redor […] extraindo riqueza dali de uma forma ou de outra."

Fora das cidades estavam os nômades e os migrantes, que frente às condições insuportáveis, procuravam lugar para viver e trabalhar, ainda que sempre acabassem dando de cara com as muralhas das cidades.

As periferias nos Estados Unidos são lugares de perda e desmantelamento, lugares com fantasias de um capitalismo florescente do passado que por um momento pode ter dado uma certa esperança a alguns de que suas vidas e de seus filhos poderia melhorar. Remanescentes de um capitalismo industrial que os deixou para trás por causa de uma mão de obra mais barata, as periferias estão prontas para a nova exploração intensificada do neo-feudalismo. Não mais fabricando coisas, as pessoas nas periferias persistem em galpões de centros de distribuição, call centers, lojas de 1,99 e de fast food. No livro mais recente do geógrafo Phil A. Neel, Hinterland, ele nota padrões entre a China, Egito, Ucrânia e os Estados Unidos. São todos lugares com desolados terrenos baldios abandonados e cidades à beira da sobrecarga.

Politicamente, a desesperança das periferias se manifesta nos movimentos destes que estão fora das cidades, movimentos que às vezes são sobre problemas ambientais (problemas relacionados à exploração de petróleo e gás, por exemplo), às vezes sobre o direito e posse sobre as terras (privatização e expropriação), às vezes sobre a redução de serviços (como o fechamento de hospitais e escolas). Nos Estados Unidos, as políticas sobre as armas posicionam a periferia e o interior contra o urbano. Nós também podemos notar a maneira como a divisão entre a periferia e o centro urbano é reinscrita nas próprias cidades. Isto se manifesta tanto no abandono das áreas pobres como em sua erradicação pela tomada de terras através da gentrificação capitalista. Quando uma cidade se torna rica, mais pessoas se tornam sem-teto — pense em lugares como São Francisco, Seattle, Nova York e Los Angeles.

A atenção crescente para a reprodução social responde à periferização, isto é, para a perda da capacidade geral de reproduzir condições básicas de vida vivível. Isto aparece no crescimento das taxas de suicídio, no aumento da ansiedade e consumo de drogas, no declínio das taxas de natalidade, menor expectativa de vida e, nos Estados Unidos, na autodestruição psicótica da sociedade por ataques a tiros em massa. Isto aparece nas infraestruturas colapsadas, na água não potável, no ar não respirável. As periferias estão escritas nos corpos das pessoas e na terra. Com os fechamentos de escolas e hospitais, e a diminuição dos serviços básicos, a vida se torna mais desesperançosa e incerta.

Catastrofismo

Finalmente, o neo-feudalismo traz consigo a insegurança e a ansiedade de um profundo senso de catástrofe. Há boas razões para se sentir inseguro. A catástrofe da expropriação capitalista do excedente social, num cenário de um planeta extremamente desigual e em aquecimento, é real.

Sem compromissos, uma mística ideologia neo-feudal, que junta todas as pontas e amplifica a insegurança apocalíptica, parece estar tomando forma em um novo abraço ao oculto, ao tecno-pagão e ao anti-moderno. Exemplos incluem o Junguianismo místico do psicólogo Jordan Peterson e a geopolítica mítica de Atlantis e Hiperbórea do cientista político Alexander Dugin. Nós também podemos notar o surgimento dos neo-reacionários da indústria da tecnologia, como o bilionário fundador do PayPal Peter Thiel, que argumenta que a liberdade é incompatível com a democracia. Em uma palestra dada em 2012, Thiel explicou a conexão entre o feudalismo e as start-ups de tecnologia: "Nenhum fundador ou CEO tem poder absoluto. É mais como uma estrutura arcaica feudal. As pessoas conferem à pessoa superior todo o tipo de poder e habilidade, e a culpam quando e se as coisas dão errado." Juntamente com outros capitalistas do Vale do Silício, Thiel está mais preocupado em proteger sua fortuna de um choque com a democracia, e portanto advoga por estratégias de êxodo e isolamento, como morar no mar ou a colonização espacial, custe o que custar para salvar sua fortuna dos impostos. O capitalismo extremo passa por cima da descentralização radical do neo-feudalismo.

Para aqueles do outro lado da divisória neo-feudal, a ansiedade e a insegurança são endereçadas menos pela ideologia do que pelo uso de opióides, álcool e comida, qualquer coisa que possa entorpecer a dor de um trabalho enfadonho, sem esperança, sem sentido e sem fim. A jornalista Emily Guendelsberger descreve o estresse causado pela constante vigilância tecnológica no trabalho — o risco de ser demitido por estar alguns segundos atrasado, por não atingir as metas, por usar demais o banheiro. Os trabalhos repetitivos, de alto estresse e pouca autonomia, quando associados ao trabalho que é monitorado tecnologicamente, correlacionam diretamente com "depressão e ansiedade". Com horários incertos, anunciados como flexíveis; pagamento incerto, porque o roubo de salários é onipresente, são estressantes e mortíferos. O catastrofismo neo-feudal pode ser individual, familiar ou local. Ficar preocupado com a mudança climática é difícil quando você vive em uma catástrofe por algumas gerações.

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