programação suspensa no ar ✺ semana 10

A gente tá acostumada a ser só uma promessa

por Grupo Mexa. Imagens por Ivi Maiga Bugrimenko

Casa do Povo
Programação suspensa no ar

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a peça cancioneiro terminal, do grupo MEXA, aconteceu na exata virada da vida-pré-quarentena para a vida-em-quarentena. naquele 13 de março, por volta das 18h30 (meia hora antes da apresentação) foi decidido que não poderíamos mais nos aproximar umas das outras — pelo menos não mais naquele contexto do festival da MITsp. a energia do público aglomerado e das artistas já montadas bastou para que o cancelamento da peça fosse não mais que um gesto institucional. na rua, o cancioneiro terminal aconteceu como uma grande explosão, ou como a última canção daquele antigo mundo. numa das cenas, as atrizes respondem, uma a uma, a questão: como seria o filme da sua vida? agora, após dois meses de pandemia, refizemos a pergunta às integrantes do coletivo, que reeditaram sua cena e, de quebra, fizeram novas perguntas.

Patricia Borges

se eu pudesse fazer o filme agora, eu voltaria no tempo, pra dezembro do ano passado, agora eu nem sei o que vai acontecer, o filme ficaria sem graça demais, a gente presa dentro de casa, e depois tudo de máscara, preferiria gravar sobre o que já passou.

eu fico, agora, me perguntando, quando essa pandemia vai passar pra gente voltar ao normal?

Ivana Siqueira

no filme que a gente fosse fazer agora, eu queria que o Cancioneiro Terminal tivesse realizado todas as suas apresentações.

a pergunta que eu queria fazer pro mundo pós coronavírus seria: aprendemos a lição que somos tão vulneráveis e iguais nisso?

Dourado

se minha vida fosse um filme, primeiramente eu queria ser bem jovem pra eu mesma interpretar meu papel. e eu não ia falar sobre a minha vulnerabilidade e que eu morei no abrigo… nada disso aí! só as partes que a gente deu certo, sem foco nas desgraças. agora o filme das nossas vidas ganhou algumas cenas “indoor” e tá tudo bem. essas cenas serão muito reais e viscerais e com certeza eu faria uma edição também com foco nas conquistas e nos aprendizados desse período de resguardo. eu ainda sou a protagonista e agora também sou a diretora. no final desse segundo ato eu saio vitoriosa novamente e sobrevivo mais uma vez, eu e os meus. como eu disse anteriormente o filme da minha vida tem sempre uma lupa que foca nas nossas vitórias.

as minhas perguntas pra esse mundo novo, pras pessoas que habitam esse mundo novo que encontraremos no fim dessa catarse são:

- o que pudemos aprender com tudo isso?

- vamos continuar a botar esse aprendizado em prática ou seguir com os mesmos erros?

- vocês estão prontos pra navegar essa nova realidade e viver de forma mais saudável, mais caridosa e menos consumista ou estão apenas esperando que tudo volte ao “normal”?

(porque a antiga normalidade não mais existirá, mas isso é ótimo pra quem estiver pronto pra usufruir e contribuir…)

Anita Silvia

se eu tivesse que refazer agora essa cena, eu falaria a mesma coisa, eu me casaria com o Roberto, a Ivana ia cantar no nosso casamento, deixaria de usar crack e não iria pisar mais na Cracolândia. o filme que eu previ naquela época ainda não chegou, porque essas semanas todas eu fui muito pra lá, usei muito, perdi dinheiro, perdi objetos, e por isso é que eu tô tão chateada. porque esse filme parece que não vai chegar nunca.

nem sei que pergunta eu faria. talvez eu te perguntasse, você sabe o que é ser uma dependente química? você sabe o que é sentir que nada vai controlar o seu desespero? nada vai diminuir esse desejo? você sabe o que é não se importar tanto pro corona porque dentro de você tem alguma coisa que engole tudo?

Meu nome é Anita Silvia Vieira Lima Miranda, nesse mundo e no outro, só disso tenho certeza. Atura ou surta.

Tatyane dell Campobello

pensando agora, depois de tudo, eu faria um filme fantasioso, lúdico, mais ficção que realidade, uma história contada como um conto, algo da imaginação, que eu pudesse ter inventado. eu contaria que o coronavírus nunca existiu, que a gente se apresentou no MIT, que depois disso a gente foi pra Nova York. eu diria que o MEXA tava consagrado na cidade e no mundo e que por isso a gente movimentou muita coisa. isso é tudo ficção e é verdade ao mesmo tempo, por isso no meu filme eu ia colocar essa dúvida do que aconteceu e do que eu inventei.

hoje eu me pergunto coisas diferentes do que me perguntava antes, eu fico pensando de que adiantou tanto close? todas somos iguais? pra que vale juntar tantas coisas na vida? será que você realmente tem alguma coisa neste mundo? de que valeu tanta hipocrisia? qual é o valor do ser humano? qual é o meu preço?

João Turchi

hoje eu responderia que acredito mais nas imagens do que nos textos. por isso o meu filme seria mudo. teria imagens nossas editadas com imagens do mundo, numa espécie de colagem de acontecimentos, que não fazem sentido juntas, mas colocadas lado a lado criam uma narrativa. não sei exatamente quais seriam essas imagens, sei que todas do grupo em algum momento apareceriam, como no videoclipe que a Yasmin dizia que queria fazer.

hoje eu me pergunto quais eram minhas saudades que agora ainda fazem falta?

Barbara Britto

se não fosse uma live, seria muito pior, seria apenas uma lembrança

e se agora eu quisesse ser palavra ao invés de imagem?

quem mata mais coronavírus ou transfobia?

existe máscara contra racismo?

agora a gente já pode se abraçar?

Lu Mugayar

se fosse hoje, as cenas que eu previ seriam impossíveis, não seria possível casar a Anita, porque casar online nunca foi uma opção e tomara que nunca seja. não existe casamento sem abraços sem beijos sem toques. hoje, o mexa e o nosso filme não seriam possíveis.

quando vamos tomar nossa primeira cerveja no bar da Bete?

Luiza Brunah Wunsch

o filme começaria nos anos 30, começo da boemia, madame satã integrante do grupo MEXA. juntas faríamos um manifesto cultural na frente do Teatro Municipal, onde ela foi impossibilitada de entrar por sua cor e orientação sexual. o filme continua até hoje em dia, da forma como estamos agora, integrantes longes uns dos outros, dissipados, impossibilitados de agirem e reagirem artisticamente. essa cena teria Luiza Brunah em Petrolina, Pernambuco, teria tantas outras que habitam dentro dela. e essa cena seria triste.

a minha pergunta pós-corona seria será e está sendo: foi bom pra você? conseguiu pular essa fogueira?

Muniky Flor

agora nos tempos de hoje eu digo se minha vida fosse um filme…. nesse tempo de covid-19 esse coronavírus…. este filme iria combater essa doença petulante persistente não desejada… neste filme cada um de nós do mexa seria um herói… e cada um de nós e os quatro cantos desse mundo iria transmitir o vírus da cura esse seria o filme no dia de hoje… me chamo Muniky flor sou uma mulher TRANS e luto diariamente para ser um sobrevivente nessa sociedade…

Dani Pinheiro

acho que essa saída ficcional e científica da realidade continuaria a funcionar na minha imaginação. no futuro, a gente despertaria, depois de nossos corpos ficarem por um longo tempo armanezados em câmeras-cápsulas ultra tecnológicas que nos preservaram. as nossas vidas poderiam ser vistas e revividas por quem quisesse entrar nessas cápsulas do grupo. essas máquinas seriam uma instalação audiovisual futurística inventada por nós. estaríamos todas belíssimas no futuro. eu acrescentaria a possibilidade de que essas cápsulas poderiam nos conectar umas às outras. conectar nossos inconscientes, nossos sonhos, as apresentações do mexa, em lives virtuais reais, em ficções reais, mais ou menos como já acontece. a gente continuaria acontecendo junts.

minha pergunta é: Vai ter lanche?

Laysa Elias

o filme da minha vida ia ser um filme de palavras e não de imagens. como a Barbara que não quer mais ser imagem, eu também acho que a gente já fez imagens demais. ia ser um filme de legendas, com todas as palavras que ouvi da Taty, da Ivana, da Anita, da Giu, da Ane, da Yasmin, do João, da Lu, do Ale, da Barbara, da Dani, da Muniky, da Luiza, da Patricia, do Roberto.

como a gente constrói uma nova possibilidade de mundo com as ruínas do mundo que acabou?

Grupo Mexa foi criado em 2015 após episódios de violência em alguns centros de acolhida em São Paulo. O grupo realiza ações que transitam entre a arte e a política, assumindo lugares de fala e de falha de conceitos que procuram enquadrar corpos e estéticas. É formado por pessoas em situação de vulnerabilidade, em situação de rua e por membros da comunidade LGBTT que, a partir de derivas, performances, escritas e protestos, criam obras limítrofes, que não se encaixam em categorias precisas. O coletivo já se apresentou em espaços como Esponja, Casa do Povo, Pinacoteca e galeria Jaqueline Martins, além de ter participado de mostras como a VERBO, realizada pela Galeria Vermelho, e a 11ª Bienal Sesc de Dança. Em 2019, recebeu o Prêmio Denilto Gomes de Dança na categoria olhares para estéticas negras e de gênero.

Mexa é um coletivo em residência na Casa do Povo.

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A Casa do Povo é um centro cultural que revisita e reinventa as noções de cultura, comunidade e memória. www.casadopovo.org.br