Como foi a demissão mais dolorosa da minha vida.

Programador Sincero
Programador Sincero
8 min readJul 30, 2015

Esta história é real e aconteceu justo comigo, um programador web que deveria ser insubstituível.

Eu finalmente havia conseguido. Eu estava no ápice. Eu estava em um escritório na Vila Olímpia, no meio do novo Vale do Silício de São Paulo. Eu via carros novos. Eu via gente passando todos os dias. Eu via mulheres lindas no bares. Eu via restaurantes lotados. Eu via gente com planos luminosos. Eu via prédios sendo construídos. Eu experimentava todas as energias daquela região. Eu me sentia um pouco mais perto de algo bom, eu me sentia um pouco mais perto das estrelas.

Eu estava trabalhando em uma agência digital bacana. Comecei a ter contato com todos os tipos de pessoas. Eu me sentia muito quadrado. Eu me sentia um peixe fora da água, impressionado pela beleza do que havia acima do mar. Aos poucos fui me acostumando com os projetos de internet, que até então eu não tinha muito contato, por sempre ter sido um desenvolvedor de sistemas corporativos. Com o passar do tempo, passei a amar o meu emprego, passei a curtir a curtir cada dia, consegui dominar o meus medos internos e aos poucos, consegui usar a minha energia interna para focar nos projetos e aos poucos, comecei a abandonar a fase eu-menor-que-o-mundo para chegar ao eu-igual-ao-mundo. Consegui alugar um quarto perto de lá e com isso, tive possibilidade de ficar bem mais tempo, pude chegar umas 10:30 da manhã todos os dias e tive a possibilidade de beber à vontade com os caras porque os bares ficavam a 1 km de casa. Formei vínculos que até hoje tenho, 5 anos depois. Eternos. Firmes. Conversávamos sobre tudo. Sobre a vida, sobre a morte, sobre OVNIs, sobre músicos, sobre sociedade, política, mundo corporativo, bucetas e muito mais. Uma épica de extrema efervescência cultural. Aprendi muito com eles. Saí do meu mundo.

Após alguns meses as coisas começaram a mudar bastante. Eu, embora estivesse feliz, ganhava pouco e também, ganhava menos que o meu emprego anterior. Novos projetos chegaram. Eu, por ter ido relativamente bem em outros projetos fui “eleito” para um projeto tenso e crítico para a agência. Fui para a linha de frente, como sempre aconteceu na minha carreira. Mais uma vez, a ponta da lança. Atuei em uma equipe grande mexendo com tecnologias que eu não conhecia, frameworks que eu não conhecia e tive que correr atrás. O prazo vendido foi absurdamente curto. Tive que trabalhar todos os dias até entregar. Isso incluiu sábado, domingo e feriados. Carnaval. Pizzas. Solidão. Stress. Falta de tempo para beber. Ausência de banco de horas. Ausência de hora-extra na carteira. Solidão. Tristeza. Cansaço. Desânimo. Culpas. Disputas. Enfrentamentos com GPs.

Como um alento, em um dia desses meu celular tocou. Um amigo que conheci em uma entrevista havia um certo tempo me ligou. Havia ido para uma empresa promissora. Com faturamento promissor. Com crescimento promissor. Falei sim. Fui sabatinado por 6 caras numa entrevista que durou 2 ou 3 horas. Voltei para a empresa. Pedi 3 semanas para me desligar.

Entreguei a minha parte do projeto. Corrigir meus bugs. Ajudei no que dava. Almocei com meus brothers dos projetos anteriores muito mais vezes. A pressão de súbito diminuiu. Voltei a beber mais com os caras. Eu me voltei a me sentir feliz porque a pressão estava diminuindo e o sistema estava em produção, funcional, para todo mundo usar. E estavam usando. E estavam gostando. O cliente sorria. Todos estavam felizes. Eu também estava feliz. Estaria na empresa nova em pouco tempo, ganhando 2 mil reais CLT adicionais ao salário que eu então tinha. Isso significaria 7k em 2010 ou 2011. Para meu custo de vida da época estava de excelente tamanho. Plano de saúde bom, VR bom, benefícios, etc... Finalmente estaria trazendo dinheiro decente pra casa.

Eu comecei a me sentir maior que o mundo. Eu-maior-que-o-mundo. Fui para a outra empresa. Arrebentei. Encontrei um gerente castrador. Encontrei um sistema pronto. Encontrei gente legal, de empresa, conservadora, certinha, correta, branca, caminhando para a morte pensando em vencer na vida. Com sonhos roubados. Castrados. Conformados. E de súbito comecei a ver que eu precisava ver gente de cabelo azul, alargadores, com discursos políticos fortes, com tatuagens, com ideais e com vontade de mudar o mundo. E eu vi que eu estava num poço de profunda normalidade. Eu era um grande talento. Promissor. Foda pra caralho. Eu entendi a porra do sistema em poucas semanas. Ninguém havia conseguido fazer isso antes. Fui capaz de otimizar o projeto como ninguém havia antes havia tentado. Eu queria mudar mais. Eu queria usar toda a minha energia interna para fazer algo transformador, impactante, foda. Mas o meu gerente não queria deixar sequer que eu organizasse as classes em pastas na solution. Migrar para o .net mais recente? Nem pensar!!! Foda. Eu tava desesperado por dentro. Eu não conseguia trabalhar por trabalhar, sem qualquer objetivo, sem qualquer liberdade, sem qualquer viés de melhoria.

Eu me vi escravo de um salário CLT full alto, invejável. Estava numa empresa com clientes bons, projetos grandes, futuro brilhante e deprimido. Procurei emprego com muita energia. Todos os dias. Decorava as vagas da APInfo. Fiz algumas entrevistas. Não passei em várias porque queria um salário alto (tenho vários causos para contar sobre isso!). Passei em outros processos seletivos mas não fui.

Não demorou 1 ano e me chamaram de volta para ser líder técnico da antiga agência, inicialmente, para fazer um projeto em uma tecnologia específica (não vou citar aqui para que não descubram minha identidade!). Eu pedi um valor alto para não chamarem. Meu amigo disse que sim, que eu poderia voltar. Comecei a mexer no projeto. Mas a empresa estava diferente. No dia que entrei muita gente estava sendo cortada por redução de custos. Gente que eu gostava (mesmo que não gostassem de mim ou não me conhecessem). Gente que era parte do “espírito” da agência. Gente com anos de casa. Eu fiquei muito “cabrero” com isso. Muito mesmo. Estavam roubando as pessoas diferentes de mim? Estavam colocando gente profissional “de verdade” no lugar delas? Estavam buscando novos escravos mais baratos? Que porra era aquela? Que despedidas tensas no facebook eram aquelas? Que lágrimas eram aquelas?

A agência mudou de prédio. Começou a focar em lucratividade e custos menores. Foi para um lugar escroto. Gente estranha começou a dar ordens. Gente estranha começou a ter poder. Parte dos meus amigos da minha primeira passagem já não estavam mais lá. Outras pessoas com outras energias estavam lá. A Vila Olímpia já não resplandecia tanto assim. Os restaurantes bons ficaram bem mais longe do prédio novo. As energias estavam quebradas. E de súbito me vi de novo, no lugar errado, na hora errada. Eu, que estava na fase do eu-maior-que-o-mundo me via em uma fase eu-mudei-de-mundo-para-mundo-pior.

As pessoas naquele prédio perdiam suas energias sem saber. Eu me sentia sugado. Apelei pra proteção de alguns cristais. Nada resolvia. Tinha que lidar com chefes escrotos, pressão em coisas fora do meu controle. Tive que mandar embora um programador que simplesmente se recusava a falar comigo por algum motivo. Não tive como segurar. Meu gerente (amigo de outrora que me recontratou) encarnou com o cara e ele se fodeu. Almocei com meus amigos que sobraram sempre que deu. Ninguém conseguia mais chegar a assuntos mais profundos. Eu comia comidas, gorduras, açúcares e cafés eventuais. E via pessoas em outras mesas. O que elas sentiam? Do que falavam tanto? Onde eu estava? Onde todo mundo estava? Onde estava a minha energia? O pecado morava mesmo ao lado? E o Paraíso?

As semanas foram passando. Os meses também. A energia que me restava foi caindo. Perdemos o projeto que havia sido o principal motivo da minha contratação para uma agência rival. Fui para outro projeto que acabou sendo entregue. Fui depois para outro que já existia há muito tempo na empresa, para ajudar. E nisso começou a minha queda. Na verdade, aumentou o coeficiente angular da minha queda rumo à demissão, inevitável energeticamente.

Neste projeto, altamente complexo em termos de regra de negócio e arquitetura (cagada e complexa), minha produtividade chegou a ficar abaixo de zero. Eu não entendia realmente porra nenhuma do que era pra fazer. Não entendia as regras. Ninguém me explicou nada. Fui jogado na fogueira. Eu sabia que deveria ficar até de madrugada para conseguir entregar. Todos os dias. Mas não deu. Eu não tava conseguindo usar a minha energia para isso. Meu corpo simplesmente se recusava. Eu cheguei atrasado vários dias. Desanimei. Arreguei.

Nos meus últimos dias eu tentei ver coisas positivas na Vila Olímpia. Tentei ver coisas positivas nas pessoas. Mas minhas costas teimavam e ficar curvadas para baixo e eu só conseguia ver o chão. As pessoas que bebiam eram apenas pessoas que bebiam. Os carros que passavam eram apenas carros que passavam. O chão em que pisava era apenas um chão em que eu pisava. Prédios altos, paredes envidraçadas, reflexos do sol, um gostoso queijo quente em manhãs frias. Tudo isso havia ficado para trás. Aquelas ruas, aquelas pessoas, aqueles momentos. Aquilo tudo estava se desvanecendo. “Na parede da memória esta é a lembrança que dói mais”.

Fui mandado embora por um cara que falava de mim pelas costas. Ao conversar com gerentão, fui jogado fora e falaram que eu não tinha utilidade nenhuma mais. Eu estava indo mal e até o estagiário estava produzindo mais do que eu. Tentei até erguer a voz e falar que era injusto, que não recebera treinamento, que precisaria de um tempo extra pra me adaptar. Eu havia pedido ajuda pra um outro líder técnico para arrumar uma cagada que ele havia feito que nem outro líder técnico tinha conseguido resolver; esta informação chegou ao gerente como mais um fator para atestar a minha incompetência, fato prontamente aceito sem qualquer chance de defesa ou negociação. E justo naquele dia, eu havia sentido o click e todo o sistema fazia sentido. Consegui entregar a task e me vi menos corno no sistema. Mas eu já era visto como um bigbrother a menos na casa. A primeira vez é sempre a última chance na vida real.

Naquela última sexta-feira do mês, subi para o RH. Assinei os papéis. Despedi-me de alguns. Ignorei outros filhos da puta de merda, falsos, que não foram homens comigo e não falaram na cara as coisas para eu ter chance de evoluir e corrigir meus erros.

Andei pela Gomes de Carvalho. Andei devagar. Olhei calmamente cada detalhe da rua. O sol pegava em lugares que até então eu nunca havia visto, já que eram 4 da tarde. Caminhava lentamente. Humilhado. Eu me sentia um lixo. Injustiçado. Arrependido. Meu pau era o menor do mundo.

Peguei o ônibus para a minha casa. Eu poderia ter ido de carro. Mas não quis acreditar que seria demitido naquele dia, mesmo já sabendo disso intuitivamente.

Eu era PJ e peguei uma boa grana porque também pagavam férias. Pude ficar em casa por um tempo, fazendo um projeto pessoal pra passar o tempo. Consegui um trampo em uma empresa mais próxima, 15 dias depois. Eu não tive tempo pra descansar depois de 3 anos intensos no coração da Cidade de São Paulo.

Demorei pelo menos dois anos para me recuperar emocionalmente desta demissão. Esta demissão humilhante acabou com a minha autoestima. Aceitei o primeiro emprego que apareceu. Numa empresa de merda. Num projeto de merda. Esta fase passou e hoje estou bem, com conhecimentos atualizadíssimos e com 5 anos adicionais de boas experiências desde então. Coloquei mais projetos no ar. Eu reconheci pra mim mesmo que eu fui/sou um grande talento até pro pessoal de elite de Sampa, pois com 5 anos de experiência eu cheguei a líder técnico, algo que só com 10 anos faz sentido para a maioria das pessoas. Mas eu admito que fiz muitas cagadas ao mudar de empresas e certamente hoje eu poderia estar em uma situação muito melhor. Eu poderia estar alegre e satisfeito por ter um emprego e ser um dito cidadão respeitável. Eu poderia ir da pipoca aos macacos na santa paz de Deus, cercado de certezas e cercado de futuros bons.

Ou não.

--

--