Eu mereço

Programador Sincero
Programador Sincero
7 min readJul 5, 2015

Esta história é baseada em fatos reais, que alguns amigos me contaram :)

“Três da tarde. Finalmente me ligaram! A vaga é minha! Eu mereço!” O nosso amigo que finalmente conseguia a sua primeira vaga na área de desenvolvimento de software.

Ele já havia se formado. Estava procurando um trabalho há alguns meses. Como não havia estágios no currículo e não era ninguém na área, ninguém sequer ligava para ele. O nosso amigo estava desacreditado, desempregado, fudido, sem grana e tendo que aguentar os pais o culparem por ser um vagabundo. Mas este suplício havia chegado ao fim. Semana que vem começaria como um programador júnior na consultoria que ficava perto da sua casa. Não havia forma melhor de terminar a semana. Ele não foi pro bar comemorar pois não tinha grana sequer pra bancar a gasolina. E claro, não tinha um carro porque não tinha crédito para aprovar sequer uma compra na padaria.

Nos primeiros dias do emprego novo, ele não precisou fazer nada. Estranhou, mas mesmo assim seguiu os conselhos dos caras, que apenas disseram para ele ir estudando a tecnologia (.NET, SQL Server, o de sempre) e tentar entender a estrutura do projeto em que futuramente iria atuar quando estivesse em condições.

E assim foi. Ele conseguiu aprender alguma coisa sobre .NET. Aprendeu o básico sobre a linguagem, o básico sobre projetos web, o básico sobre acesso a dados e o básico sobre debugar. E assim, ao fim de dois meses, ele se tornou um grande programador .net, um talento, uma surpresa! Deixou de ser um fazedor de páginas PHP para, em pouco tempo, ser um dos maiores talentos da programação da região toda.

Com isso, naturalmente o pessoal da consultoria começou a passar algumas correções para o nosso amigo fazer. E elas foram feitas com incrível velocidade. Os donos da consultoria começaram a sorrir e a comentar no bar. Ouvia-se frases como “porra, eu falei pra vocês! Temos que investir nas categorias de base”, “caralho, esse juninho já tá me dando tanta grana quanto qualquer um desses caras se acham seniores”, “Esse molequinho surpreender a gente — eu falei pra você contratá-lo logo”. Os gerentes e diretores, como sempre, ficavam muito satisfeitos, pois não é todo dia que dá pra colocar uma pessoa barata para faturar como gente cara. O valor-hora do nosso amigo era por volta de 15 reais, mas pelo trabalho dele, cobravam quase 90. Gostoso, não é?

Como em todas as empresas, de tempos em tempos há certas mudanças no quadro gerencial. Nisso, contrataram um cara para ficar no lugar de um antigo gerente, que havia caído para cima. O que acontece nessas trocas de gerentes é que sempre há muitas perdas. Quais perdas? Promessas que seriam cumpridas e histórico dos profissionais. Explico: este gerente, que até então estava no comando, tinha em sua cabeça todo arsenal de promessas de promoção e evolução na carreira para os funcionários mais antigos e mais experientes. Grande parte dos caras tinha em seu plano de voo algum aumento de salário, evolução na carreira ou possibilidades de tocar outros projetos. Este gerente novo (tanto na empresa como na idade/experiência) não soube levar este tipo de transição. Nas escolinhas de gerência há certos conhecimentos que não se ensinam, talvez porque não precisem ser explicados, como por exemplo, construir um relacionamento com o antigo gerente. Em coisa de poucos meses os principais desenvolvedores da consultoria começaram a buscar outras oportunidades e passaram a deixar a empresa na mão. Isso começou a assustar o gerente novo e ao mesmo tempo começou a agradá-lo, pois achava que poderia formar uma equipe boa e lucrativa, livre de insubordinados e depressivos de antigamente.

O nosso desenvolvedor super-star conseguiu se aproveitar muito bem desta situação. Para quem quer mostrar serviço e quer seu lugar ao sol, não há nada mais oportuno do que ser um recurso bom, barato, obediente, comprometido e sem os caras de antigamente para atrapalhar seu caminho rumo ao seu lugar no céu. E assim se fez. Ele começou a ficar até mais tarde sem cobrar, começou a gargantar (sic) na sala do café e conseguiu até a capa da finada comunidade do Orkut denominada “Pequenos feitos alardeados”. Falava sobre feitos incríveis, conhecimentos infinitos e conseguiu maravilhar os olhares de pessoas de fora da área que só viam seus resultados e seu baixo custo.

Como em qualquer empresa de consultoria picareta, sempre aparece mais um otário que deseja realizar um projeto, cheio de sonhos e expectativas boas. As consultorias são tão confiantes que acham que sempre conseguirão entregar o projeto no prazo, com as mesmas pessoas ou então, sempre acham que é só contratar o cara anunciando uma vaga urgente que tudo se resolverá. Neste projeto, que começou quadrado, sem o devido planejamento, sem as pessoas, sem prazo e com um gerente incompetente que assumiu todos os riscos para si, obviamente começou a dar merda. Colocaram nosso amigo para desenvolver um projeto que é complexo até mesmo para um sênior de qualidade. Antes de começar neste projeto o cara já estava atuando em outro projeto crítico onde um terceiro incompetente estava fazendo merdas. O juninho não conseguiu resolver e usou o argumento que o projeto estava todo cagado e que para arrumar teria que reescrever o projeto do zero. Como o desenvolvedor do outro projeto não teve chance de defesa e estava desmoralizado, a palavra do juninho foi considerada como a correta e isto lhe deu credenciais para começar no projeto novo desde o início.

O que aconteceu é bem previsível e nem precisaria ser escrito aqui. O projeto deu inúmeras merdas, gerou inúmeros atrasos e o nosso amigo começou a capitalizar em cima da própria incompetência. Conseguiu fazer um monte de horas e gerou toneladas de código inútil. Pediu seu primeiro aumento. Conseguiu. Mas a orelha da lebre estava começando a ser erguida.

O cliente começou a se incomodar muito com os atrasos. Mudou o escopo algumas vezes, o que conseguiu justificar o excesso de horas extra e os esforços para corrigir o sistema. O gerente começou a notar que o senhor júnior não era nada demais e nisso agiu corretamente: colocou um outro pleno para ajudar no projeto, mas neste caso, o pleno era muito capacitado (sem ironia) e a coisa começou a andar. Provavelmente ele teve coragem e energia para remover grande parte das cagadas do júnior e o projeto, que a esta altura estava se encaminhando para o fracasso, começou a tomar um novo rumo.

Os meses foram passando e, após todo este tempo, o júnior, um dia, declarou que já sabia tudo de .NET e que agora precisava aprender outras coisas logo. Esta afirmação causou espanto no pleno que estava com ele. Este o colocou no lugar na conversa, mas seu ego recusou aceitar que era um bosta. Por mais cagadas que havia feito, o júnior tinha ainda a simpatia de grande parte da gerência devido ao seu baixo custo e a seu perfil amistoso. Mas esta simpatia começou a diminuir. Ele pediu o seu segundo aumento. E conseguiu. Mas desta vez cometeu um erro grave: ele tinha uma proposta de uma empresa muito mais séria da região, com salário CLT-full decente e com possibilidades boas de crescimento e aprendizado para ele. A desvantagem é que a empresa é da cidade vizinha. Ele usou esta proposta para justificar o aumento e para tentar provar que tinha um valor de mercado significativo. Os gerentes acharam por bem pagar o que ele pedia. Ele fazia as correções nos projetos normais da empresa e seu trabalho ainda dava lucro significativo para a consultoria.

Durante este período também teve a oportunidade de trabalhar com um sênior da consultoria em um projeto que estava começando do zero. Teria a chance de ser guiado e aprender bastante sem ter que mudar de empresa. Mas resolveu recusar a proposta porque a tecnologia que seria usada no projeto não seria ASP.NET MVC e sim ASP.NET Web Forms — para economizar o tempo de desenvolvimento o cliente exigiu que fosse reutilizado um “template” webforms — acatado! Ele disse para o sênior que já dominava Web Forms e que estava buscado projetos em MVC para ele estar em dia com que o mercado pedia. Perdeu, então, a oportunidade que precisava, mais uma vez, para ser realmente um profissional.

O tempo foi passando e ele sobreviveu dois anos na consultoria. Pediu um aumento significativo de novo. Conseguiu depois de muito insistir. Mas ele acabou alcançando um nível salarial em que já tinha que dar resultados concretos e que já tinha que tocar projetos sem dar dores de cabeça para a gerência. Ele estava num nível salarial no qual já não dá mais para brincar de ser programador. E com isso, ele foi anunciado internamente como um recurso bom, de preço médio para caro, que poderia dar conta do recado.
Colocaram o nosso amigo, então, em um projeto sério, com cliente exigente, prazo rigoroso e alto padrão de qualidade. Ele obviamente só fez merda de novo, irritou a equipe, irritou o cliente e numa sexta-feira de fim de mês qualquer, foi mandado embora, com a justificativa de que realmente precisavam de um sênior para o projeto e que ele não era tinha o perfil adequado!

Cabisbaixo, se sentiu um lixo e desprezado pela consultoria por quem tanto deu o sangue e tanto suou a camisa. Ninguém sabia reconhecer o talento dele. O cara que mais manjava .NET na região estava desempregado e desmoralizado. Ninguém intercedeu por sua causa. Nenhum técnico o endossou. Nada. Sequer tinha o que colocar no currículo de relevante — havia desperdiçado dois anos da vida sem realmente aprender nada. E custava admitir que realmente ele era um merda. O ego não deixava.Dizem que ele já arrumou outro emprego em outra consultoria ainda mais merda que a anterior. Vamos ver se aprenderá alguma coisa por lá…

Na área de desenvolvimento de software, mesmo quem não merece consegue um emprego e não há nada que possamos fazer para evitar. Se você conhece um zé buceta que quer ser programador, por favor, não o faça sonhar. Não o treine. Não o coloque no mercado. Este tipo de gente é um câncer na nossa área e a maior parte dos projetos fracassam não só por má gestão, mas claramente, por incompetência da equipe. E em última instância, este problema acaba atrapalhando o crescimento das empresas no Brasil, o que claramente, diminui o mercado para profissionais competentes e sérios, que além de terem que procurar por projetos bons, sofrem com a concorrência de embustes como este cara que vemos neste post de hoje, que daqui a dois ou três se considerará um sênior. Este moleque terá um emprego, subirá na empresa por vias nebulosas e mais cedo ou mais tarde, poderá ser seu cliente ou seu chefe. Ou seu fornecedor. Pense bem nas consequências de estimular qualquer idiota para entrar na área de TI. Mesmo.

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