Cronos devorando o próprio tempo

élis flores.
Projeto C.O.V.A.
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4 min readJun 22, 2024

Eu estou no teu apartamento com minhas lindas pernas de mulher. Minhas pernas não são de mulher, são de garota, você diz. Eu rio na tua sacada, enquanto você me fotografa pela tua velha Kodak.

Sempre piscava no momento exato do clique, então você fazia uma contagem, de um até três.

De forma paradoxal, era eu que te registrava de forma material.

Pelos teus olhos existia um cinema urbano.

Se os anjos fossem mulher, seriam tua imagem e semelhança. Te disse: Vênus.

No fundo, eu desejava ser Cronos — Na busca de criar momentos de riso e misticismo, onde você derramava teu sangue sob o meu e entalhava tua inicial em minha cintura. Amor,

éramos a única coisa eterna da existência, mas mesmo assim morreríamos.

Você frustrou nossas orações. De repente, o que era uma coisa boba de adolescentes como “se você me abandonar, serei infeliz até o fim da minha vida” se tornou uma reza. Preferia o fim com a dor irremediável do que odiar você nessa paixão fajuta, sufoca feito corda. Analisando todo as casualidades, você tinha um prazer sádico. Você amava me ver chorando — E secava minhas lágrimas dizendo que nada de existia de mais bonito do que uma mulher chorando. No momento em que eu me embriagava e berrava que te amava, você me fazia morrer — Nada mais bonito do que a morte de uma mulher, você me confidenciou, tirando o teu e o meu sutiã.

Dizem que o homem é o lobo do homem. Mas o lobo rasga, dilacera e corrói com seus caninos a carne esbranquiçada. O homem é pior. O homem gosta de humilhar e apequenar. O lobo se mostra maior pela sua decência de matar antes de devorar. O homem devora vivo.

E eu que era uma guerrilheira, nascia no meu íntimo a certeza de só existir paz na rua. E você que me fotografava, achou outra beleza e chamou de Vênus.

Não via sentido em me ver sorrindo. E nosso amor, só era amor nos teus olhos, se você me mutilasse. Admiradora inescrupulosa da natureza morta.

Algoz.

Fez do substantivo o verbo.

Presa nesta catedral, rememoro. Me fez canção, no intuito de me tornar ao infinito uma só triste coisa: solidão.

Você condenou toda nossa vida à bestialidade. Calcou os sonhos em simples matéria obscura da mimese de uma mentira. Transformou o sorriso em choro, e no momento que me viu chorando, sorriu de boca amarga. Me fez de puta. No teu gozo, existia morte. E na tua morte, existia falta.

No meu coração, existia raiva.

Você me reduziu ao nada.

Agora, nada sou, além de Cronos devorando o próprio tempo.

Imagine a tristeza que ele sentia no momento que engolia as próprias criações na busca incessante de mudar o destino.

Mesmo assim, dançando entre as lâminas, desejando que o próximo passo não doa.

Sempre doía.

Somos Cronos criando mais tempo na busca de perdê-lo.

Enquanto dormirmos juntas você dormirá com alguém que não ama.

No teu apartamento, você novamente insiste em me culpar pelo fim de nosso amor. Início. Meio. Creio na possibilidade de ter sido culpada. No momento que se cala numa agressão, estamos concordando com a mesma. As minhas mãos rosas perderam a forma, e agora já não agarram nada. Você matou a minha capacidade de desejar.

Corremos tão rápido

na busca do alívio

algo de nós caiu no meio do caminho

algo que ficou preso em mil segundos atrás.

Não sei quando é primavera e muito menos reconheço o sol de verão, ou os espíritos em minha volta. Não reconheço a hora do morrer, a hora da lascívia, e a hora da guerra. De alguma forma, estou debaixo da terra, sendo roída por vermes, a única possibilidade de entender o mundo é traduzido pelas raízes que saem de mim. Minha vida se foi nessa masmorra, e eu rasguei minutos demais tentando enxergar a melhor forma de fugir.

Misticismo barato, mas Mercúrio estava retrógado.

Saturno caindo na terra como estrela decadente, cigarros queimados observando o caos intrínseco do morrer. Você consegue calcular o momento em que nos transformaremos em areia?

Desejando um motivo que me faça sofrer além da capacidade. Uma força de horas incontáveis chorando.

No teu apartamento você me despe como de costume, na ânsia de nos reconciliarmos durante o dia.

Com os olhos de quem se sente enganada das semanas dividindo a existência no apartamento, você diz que minhas pernas são nojentas.

Fico vermelha e preta.

Um vermelho alimentado de meses.

Conto de um até três.

Se passam anos.

Bato a porta e vou embora.

Até o final da década. Ou do século.

Dessa vez, tua Kodak não me fotografou.

Sinto que era impossível capturar a linha que apartava o momento exato da despedida

dividido entre o para sempre e o nunca mais.

saturno devorando um filho, francisco de goya

Acompanhem A Cova em seus respectivos túmulos no Cemitério Virtual desta Grande Matrix!

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o espaço de tempo que existe entre o nascimento e a morte | @elisgalcosta