Para se chegar ao Ministério Público de (melhores) resultados

Achados na busca pela otimização da atuação, com base em dados, tecnologia, prioridades e gestão do conhecimento

Daniel Lima Ribeiro
Projeto Mosaico
11 min readMar 3, 2022

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Introdução

Em meados de 2021, o MPRJ deu início ao Projeto Mosaico, voltado a aprimorar a relação de custo-efetividade na atuação de prevenção e combate à corrupção e à violação de direitos fundamentais.

A aposta de foco inicial do projeto é na revisão do desenho de atribuições e táticas de atuação de um tipo chave de unidade organizacional do MPRJ: as promotorias e procuradorias de justiça de tutela coletiva (PJTC).

De início, a hipótese central do projeto era a de que o MPRJ deixa de gerar resultados nas áreas de proteção ao patrimônio público e ambiental quando, diante da prática de ilícitos penais, usa instrumentos de investigação e repressão menos efetivos. E de que essa seria a realidade da atuação do MPRJ nas duas áreas.

Dados quantitativos e qualitativos permitiram uma confirmação preliminar da hipótese. Dentre os promotores especialistas na área, entrevistados pelo projeto, 88,9% entendem que os instrumentos mais efetivos para o combate a ilícitos que configuram atos de improbidade e crimes, ou ilícitos cíveis e crimes ambientais, são a investigação e o processo penal. E não o inquérito civil e a ação de improbidade ou civil pública.

No entanto, a realidade de atuação das PJTC demonstrou que de todas as investigações de ilícitos que configuram crimes e atos de improbidade administrativa (ou dano ambiental), 72,5% usam os instrumentos de inquérito civil e a ação de improbidade ou civil pública.

Para prosseguir na confirmação da hipótese do projeto, a equipe irá conduzir um experimento junto a uma PJTC parceira, para entender a diferença que faria a possibilidade de uso de táticas e ferramentas da atuação criminal.

No entanto, grupo focal realizado com promotores especialistas e com vasta atuação em PJTC revelou um desafio paralelo, cujo enfrentamento prévio era imprescindível. As PJTC não possuem, atualmente, condição para realizar o experimento em função da sobrecarga de trabalho.

Ou seja, o uso do instrumento menos efetivo é apenas uma das causas — e não a considerada maior — para a baixa efetividade na proteção do patrimônio público e na defesa dos direitos fundamentais pelo MPRJ.

Indo mais fundo no desafio

A análise dos dados de atuação das PJTC demonstrou que a equipe do projeto precisava, de fato, mudar o seu escopo no primeiro ciclo e adiar o experimento central relacionado à atribuição criminal.

Os dados referentes aos inquéritos civis do MPRJ revelam um cenário preocupante. A duração média das investigações — que, lembrando, correspondem a 72,5% da atuação contra ilícitos que configuram crimes ambientais e contra a Administração Pública — é de 3,8 anos.

Em 2021, 1740 inquéritos civis do MPRJ tinham duração maior do que 10 anos. E, quando aos finalizados, só sabemos que houve algum desfecho; e não se a conclusão trouxe resultados efetivos — sendo natural esperar que quanto maior a duração do procedimento, menor a chance de um resultado satisfatório (p.e., pela perda de provas, má receptividade do Judiciário, dificuldade em localizar e recuperar o dinheiro público desviado etc.).

Um fator incontestável relacionado à longa duração dos inquéritos é o alto volume de investigações simultâneas em cada PJTC. A última média levantada foi de 223 inquéritos civis por PJTC, o que exige que o promotor divida o seu tempo e apenas possa dedicar apenas 43 minutos de análise por inquérito civil, por mês.

Isso, se sua função fosse apenas atuar nos inquéritos. Ajuizar uma ação é uma das medidas que conta como finalização de um inquérito — mas o trabalho continua, ainda por anos. E, além de todo consumo de tempo desse trabalho que persiste — em petições, recursos e audiências — a PJTC ainda realiza inúmeras reuniões e compromissos burocráticos.

Adendo: Agora compare a realidade do MPRJ com a do Tribunal de Contas da União, que, por suas regras de priorização e dedicação focada, permite a seus auditores dedicar até 140 horas ininterruptas por mês às auditorias mais complexas e importantes.

Ainda pode piorar

Por sua vez, o fator que explica o alto volume das investigações simultâneas é a falta de priorização e o foco excessivo em casos de pequena gravidade, muitas vezes inseridos nas atribuições dos órgãos de dever-poder de polícia do Executivo.

Mas não é só isso. São presentes, ainda, incentivos institucionais desalinhados em relação à necessidade de redução do acervo de investigações ou a dedicação de maior tempo aos casos mais importantes.

Em primeiro lugar, há uma regra da Corregedoria impondo que toda investigação instaurada seja impulsionada, não podendo parar por mais de 40 (quarenta) dias. Em segundo, o arquivamento das investigações em andamento depende da concordância do Conselho Superior do Ministério Público.

A ausência de regras institucionais pode fazer com que varie, de Conselheiro para a Conselheiro, a compatibilidade do princípio da obrigatoriedade com o dever de eficiência, ou a primazia absoluta da atuação obrigatória, em qualquer caso.

A Secretaria-Geral e a Coordenadoria de Movimentação do MPRJ utilizam o quantitativo de investigações em andamento em cada PJTC para decisões de RH. Assim, a PJTC que reduzir seu acervo, abaixo da média de inquéritos civis em andamento, corre o risco de perder funcionários e deixar de receber auxílio de outros promotores, quando necessário (por exemplo, para um caso de elevada complexidade e gravidade).

Por fim, a própria Subprocuradoria-Geral de Planejamento também se vale, como insumo quase exclusivo, do quantitativo de inquéritos em andamento em uma PJTC para decidir sobre desmembramento ou fusão de PJTC. Ou seja, caso a PJTC reduza o seu acervo, priorizando seu foco, a consequência pode ser… mais inquéritos, com a fusão de atribuições de outra PJTC.

Além disso, piorando o cenário, não há divisão nem compartilhamento do trabalho em torno de temas, ou a definição de melhores práticas e ferramentas (digitais) próprias para a atuação automatizada e em escala. Ou seja, não há gestão eficaz do conhecimento. E não há, também, uma estratégia (nem tempo disponível) para uma atuação estruturante e preventiva, voltada a evitar novos inquéritos e atuações de cunho repressivo.

Priorizando

Para reduzir o acervo das PJTC e permitir uma atuação mais efetiva, por exemplo, com o uso da atribuição criminal concorrente, será necessário criar critérios de priorização.

Antes disso, é preciso identificar os temas e focos de atuação, reorientando investigações que olham para sintomas e não causas do problema; como, por exemplo, as que representam substituição indevida dos órgãos do Executivo com dever-poder de polícia.

Em tese, é possível reunir várias investigações em torno de um mesmo tema; e/ou para todos os casos do mesmo tema adotar um procedimento-padrão (idealmente foco de transformação digital, com automação de monitoramento e de providências repetidas).

Aqui, mais um desafio. A classificação temática das milhares de investigações do MPRJ é deficiente, por no mínimo duas razões. Em primeiro lugar, porque a definição dos temas possíveis não seguiu uma lógica estratégia nem de política pública e possui inconsistências lógicas (entre temas e subtemas) e sobreposições. É o mesmo problema que existe com a tabela de assuntos do CNMP.

Em segundo lugar, os inquéritos civis são classificados com apenas um tema, quando na verdade pode haver mais de um deles envolvidos. Além disso, não há um programa que avalie a acurácia da classificação, que até hoje é manual e feita por servidores muitas vezes sem conhecimento técnico-jurídico.

A partir do conhecimento dos temas (corretos e úteis), seria possível também adotar medidas de gestão do conhecimento, pautadas na ideia de uma linha tática e conjunto de ferramentas tecnológicas apropriadas para construir uma atuação padrão e efetiva em cada tema.

Dada a padronização da melhor atuação possível em cada tema, seria possível construir soluções que combinem tecnologia, monitoramento e dados, automatizando boa parte da investigação e das providências do MPRJ.

A base para a definição de temas e prioridades

Em tese, deveriam ser os dados dos problemas sociais e de governança, externos ao MPRJ, que devem orientar a definição das linhas de atuação e informar os critérios de priorização. E não os dados do acervo de casos atualmente em andamento.

Como se viu, a realidade é de sobrecarga de trabalho (alto volume de casos em andamento simultâneo), com foco fragmentado e sem priorização. Por isso, é bem provável que os principais problemas de governança e sociais de cada município, correspondentes a violações de direitos fundamentais, casos complexos e graves ou condições facilitadoras de corrupção, não venham sendo foco de atenção do MPRJ.

Por outro lado, a priorização levando em conta apenas os dados do acervo tende a revelar que os casos mais prioritários são os de mais longa duração. E, em muitos casos, de menor chance de êxito. Ainda assim, os dados do acervo podem ter algum valor para a identificação de linhas temáticas de provável importância; e, quanto a elas, para a criação e teste de critérios de priorização.

Na prática

O Mosaico chegou à sua fase de ida a campo, contando com uma primeira PJTC voluntária. O primeiro passo foi ter acesso aos dados que identificam as investigações em andamento.

A atribuição da PJTC participante é genérica — todos os temas -, cobrindo cinco municípios do interior do Estado do Rio de Janeiro, e sendo partilhada (por critério de par e ímpar) com uma segunda PJTC. Perfeito para exemplificar mais um fator de ineficiência: impossível ter a visão do todo em uma mesma área de atuação, quando mais de um órgão atua no mesmo tema — e, por vezes, em sintomas do mesmo problema.

Para facilitar o desenvolvimento de um método de agrupamento temático e priorização, decidiu-se por um recorte de dois temas, meio ambiente e patrimônio público — os dois que costumam mais do que os demais a corresponder a ilícitos penais. Com isso, a ideia é chegar mais rápido às condições para o experimento do foco central do projeto (uso da atribuição criminal concorrente).

A base de dados da PJTC está organizada em uma planilha Excel — sintoma da ausência de um sistema institucional que seja eficiente na gestão das investigações.

Preparando um log de limpeza e transformação dos dados, a equipe do Projeto partiu do acervo geral de procedimentos para o recorte daqueles que envolvem, em sentido amplo, as temáticas de meio ambiente e patrimônio público. Em seguida, identificou os que possuem um perfil repressivo (e que podem corresponder a crimes) e os de tática estruturante.

Assim como em outras PJTC, o mesmo efeito do número elevado de procedimentos em andamento simultâneo (152 — ainda que bem inferior à média) também ocasionou longa duração para a conclusão dos inquéritos: média de 3,6 anos.

Temas

Em uma primeira divisão temática, baseada na experiência de atuação em PJTC e referendada pelos especialistas do MPRJ que contribuem para o projeto Mosaico, chegou-se a quatro temas de patrimônio público e dois temas de meio ambiente.

A distribuição dos casos entre os temas revelou a recorrência de investigações por irregularidades em licitações e contratos públicos. (62% do total dos casos e 84% dos casos de patrimônio público).

Prioridades

O próximo passo foi testar a criação de critérios de prioridade e a avaliação da disponibilidade de dados para classificar as prioridades de cada investigação em andamento. Lembrando que, por ora, se trabalha com o recorte das investigações de caráter repressivo, que podem corresponder a crimes.

A lógica é seguir a ideia geral de gravidade, urgência e tendência. A data do fato investigado e sua tendência de piora dariam conta de uma boa avaliação dos dois últimos fatores. Já a medição da gravidade varia de acordo com o tema.

Para os casos repressivos de patrimônio público, a métrica de gravidade parece simples: o valor do prejuízo causado (ou risco correspondente) aos cofres públicos. Já para os casos de meio ambiente, a gravidade pode ser medida pela extensão da área afetada (em casos de dano ambiental, como desmatamento); ou pelo porte da atividade (em casos de licenciamento ambiental irregular ou ausente).

Uma vez definidos os critérios preliminares de priorização, a próxima medida foi solicitar à equipe da PJTC a complementação dos dados referentes a cada critério de prioridade. Foi simples encontrar a data de início do fato e classificar a tendência. O quadro mais diverso foi encontrar o valor do prejuízo aos cofres públicos, para os casos de patrimônio público.

Nesse ponto, um achado interessante. Há um aparente gargalo no trabalho do Grupo de Apoio Técnico Especializado, órgão do MPRJ que realiza as análises de superfaturamento. De 26 casos investigando licitações e contratos, metade deles aguardam análise do GATE para confirmação e valoração de eventual superfaturamento. A pendência mais antiga dura um ano.

Uma saída para a falta dos dados de prejuízo ao patrimônio público foi utilizar o valor do contrato — que serve como um teto para o prejuízo possível causado aos cofres públicos.

Levando em conta esse dado, foi interessante confirmar a correlação entre a gravidade do caso e a duração da investigação. E perceber que, por conta dessa duração, nenhum responsável pelos casos mais graves ainda está no cargo. E que, nesses casos, os inquéritos apuram condutas que ocorreram há mais de 10 anos.

Mais do que isso. A longa duração dos casos mais graves trouxe à tona uma questão para a continuidade do projeto.

Reprimir ou estruturar?

O Mosaico teve início com a ideia de explorar o potencial ganho de efetividade quando se reúnem os instrumentos de atuação do MP — cíveis e criminais — de atuação para o combate à corrupção.

Uma reflexão que os achados até agora colocam é que poucas, ou talvez nenhuma, PJTC possuem condições para rodar o experimento da atuação criminal em casos prioritários, de expressiva gravidade e urgência.

Pode ser que a oportunidade para o experimento apareça em alguma PJTC, quando der a sorte de detectar, tempestivamente, um caso de alta gravidade. Mas, desde que criando condições para o trabalho focado apenas neste caso, até sua conclusão. (O que pode requerer priorização e, além dela, autorização e suporte da PGJ).

Quanto a criar condições para as PJTC utilizarem a atribuição criminal concorrente, será preciso previamente reduzir o acervo por meio do agrupamento temático e da priorização. Mas, considerando os efeitos passados da atuação ineficiente, pode ser que os casos prioritários tenham baixa chance de sucesso — e que não cheguem perto da gravidade e urgência de outros casos que sequer estão sendo investigados.

Por isso, uma reflexão que precisa ser feita pode ocasionar um segundo desvio de escopo para o Mosaico. Após encontrar grupos temáticos e priorizar, pode ser que a atuação mais estratégica e, de fato, prioritária não seja repressiva, mas estruturante. Principalmente voltada para a promoção de transparência ativa e dados abertos pelo Executivo.

Com isso, e com a construção ou compartilhamento de ferramentas de inteligência de dados, será possível detectar e selecionar, de acordo com a priorização, os casos mais graves. E, assim, surgir a oportunidade para o exercício concorrente da atribuição criminal.

Próximos passos

As próximas etapas do projeto incluem avanços na formação da rede de parceiros — já em conversas com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, a Transparência Internacional, e os MPPB, MPSC e MPMG.

Em seguida, a equipe e parceiros realizaram uma pesquisatona, voltada a levantar ferramentas de tecnologia e linhas de atuação estratégica já existente nos temas do projeto. Além disso, buscará desenhar uma proposta de organização temática e critérios de priorização — tanto para investigações quanto para problemas sociais.

O Projeto Mosaico está explorando novos métodos de trabalho e a comunicação é essencial nesse processo. Comente nesta publicação sugestões ou pensamentos sobre o texto, para colaborar na construção de um Ministério Público mais efetivo.

Equipe: Daniel Lima Ribeiro, Breno Gouvêa, Beatriz Ferreira, Marcelo Coutinho Juliana Bossardi e Larissa Lima

Este artigo não representa a opinião institucional do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, de seus órgãos ou integrantes, sendo de iniciativa e responsabilidade exclusivamente pessoal do autor.

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Daniel Lima Ribeiro
Projeto Mosaico

Ex-Coordenador e atual Fagulha do Laboratório de Inovação do MPRJ (Inova_MPRJ). Duke SJD. Curte correr e nadar. Curioso incurável.