Ponte para o desconhecido

Vencer a trajetória de dependência e o medo do desconhecido eram desafios maiores do que o imaginado

Daniel Lima Ribeiro
Projeto Mosaico
10 min readMar 3, 2022

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Duas das principais diretrizes do design dizem respeito à importância da natureza iterativa e não linear de um projeto de inovação; e do valor da perspectiva das pessoas envolvidas no desafio.

Todo plano, por melhor que seja, é uma aposta que só vai encontrar a real validação quando suas premissas forem testadas com os atores envolvidos. O projeto Mosaico, chegando ao final da sua fase conceitual passou por esse primeiro teste.

O Projeto Mosaico

A Subprocuradoria de Planejamento e Políticas Institucionais e o Laboratório de Inovação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (Inova_MPRJ) deram início ao Mosaico, projeto de inovação organizacional.

Com o objetivo de tornar o MPRJ mais efetivo, o Mosaico explora novos desenhos e táticas de atuação para um dos órgãos mais importantes da Instituição: as Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva (PJTC).

As PJTC são responsáveis pelo combate e a prevenção à corrupção, assim como pela defesa dos direitos fundamentais. No entanto, no MPRJ, há uma aparente fragmentação de instrumentos entre as PJTC e as Promotorias de Investigação Penal (PIP).

As PJTC são responsáveis pelo combate e a prevenção à corrupção, assim como pela defesa dos direitos fundamentais. No entanto, no MPRJ, há uma aparente fragmentação de instrumentos entre as PJTC e as Promotorias de Investigação Penal (PIP).

As PJTC não contam com a atribuição das PIP (o procedimento investigatório criminal e a ação penal), mesmo para a repressão de ilícitos que configuram tanto crime contra a Administração quanto ato de improbidade administrativa.

E, na prática, o que se tem é um quadro contrário à regra de Pareto: quase 80% das investigações desses fatos são conduzidas pelas PJTC, que possuem instrumentos menos efetivos para o trabalho (o inquérito civil e a ação civil pública).

O desafio paralelo

As entrevistas e o grupo focal realizados pela equipe do projeto evidenciaram que o excesso de trabalho e a falta de tempo disponível para cada investigação nas PJTC são riscos para o objeto central do Mosaico — encontrar o melhor desenho das atribuições e táticas para o uso concorrente da atribuição criminal pelas PJTC.

Confirmamos com evidências que a sobrecarga de trabalho faz com que a atribuição criminal concorrente, para as PJTC que a não possuem, esteja associada à ideia de ainda mais trabalho. E, para as PJTC que porventura já a possuem, que não seja de fato utilizada. Nas duas situações, os resultados do experimento central seriam frustrados.

Por isso, a equipe do Projeto entendeu que resolver a questão da sobrecarga de trabalho era um obstáculo intransponível e preliminar com relação ao desafio central do projeto.

Entendendo a sobrecarga de trabalho

A média de inquéritos civis em andamento nas PJTC do MPRJ é de aproximadamente 223. Em média, a duração dos inquéritos civis é de 3,8 anos

Nesse mar de inquéritos civis, é provável que em grande parte das PJTC o foco das investigações seja fragmentado (varejo de problemas) e não estratégico — isto é, não seja focado nas causas e pontos estruturantes de programas e políticas de governo cuja deficiência criem ou permitam o surgimento dos vários casos isolados.

Assim, o objeto da maior parte dos inquéritos civis em andamento no MPRJ pode corresponder a sintomas e não à causa real dos problemas — como a omissão ou a deficiência de serviços públicos e programas de governo (coletivamente, as chamadas políticas públicas).

Alguns fatores que podem explicar esse quadro são:

  • (a) falta de um método institucionalizado (melhores práticas e diretrizes técnicas) para orientar a instauração, o planejamento e a definição do escopo de investigações;
  • (b) incentivos desalinhados pela própria Administração do MPRJ, que usa o volume do acervo das PJTC para recompensar as PJTC com maior acervo (por exemplo, com mais estrutura de pessoal — servidores ou auxílios, ou com a criação de novas PJTC para a divisão do acervo) e punir as PJTC que possuem um acervo menor (e.g., ganho de acervo por mudanças de atribuição, extinção de promotorias, ou falta de reposição de servidores); e/ou
  • (c) incentivos desalinhados pela Corregedoria do MPRJ, que impõe e fiscaliza um prazo máximo de 40 (quarenta) dias para a movimentação de todo e qualquer inquérito em andamento, isto é, sem priorização em função da importância de seu objeto.

Com isso, a tendência é que o MPRJ seja mais efetivo em casos de menor complexidade do que nos demais. Pelas mesmas razões, não houve até hoje condições nas PJTC ou demanda criadas por elas para o desenvolvimento de um método de trabalho para solução de casos complexos e inquéritos centrados em problemas estruturais.

Primeiro desenho de experimento

A equipe do Mosaico desenhou um primeiro experimento focado na solução do desafio da sobrecarga de trabalho. O objetivo é aumentar o tempo disponível de trabalho de uma PJTC nos casos mais importantes e complexos.

Com isso, talvez haja espaço para explorar as melhores táticas e usos da atribuição criminal concorrente. Há relativo consenso que o uso concorrente da atribuição criminal pelas PJTC pode, em si mesmo, ser uma das medidas com o resultado de criar mais tempo disponível. É que 88,9% dos promotores consideraram ação penal mais efetiva do que a ação de improbidade para a repressão de ilícitos contra a Administração Pública.

Inicialmente, a equipe identificou duas formas de alcançar aquele objetivo. A primeira delas seria reduzindo o volume do acervo (total de investigações em andamento) da PJTC participante do experimento. A segunda focaria em criar critérios de priorização e dedicação de tempo de trabalho proporcional à importância de cada investigação em andamento.

Para o primeiro caminho, a equipe imaginou partir da ideia de que tanto o controlador/fiscal quanto o bom gestor deveriam ter a mesma preocupação: prevenir fatores de ineficiência dos serviços públicos e programas de governo. Um desses fatores é, naturalmente, a ocorrência de fraudes.

Com base nessa visão, que aproxima o método de trabalho do controlador ao do gestor, reduzir o acervo de investigações envolveria mudar o seu foco — dos sintomas para as causas estratégicas dos problemas. O trabalho seria de realizar um agrupamento temático, quem sabe partindo de linhas de atuação já usadas por outras instituições de controle, assim como para o trabalho de planejamento, programação e gestão de políticas públicas pelos órgãos do Poder Executivo.

Há precedentes no MPRJ de que isso seja possível. O Enunciado 51 do Conselho Superior permite o arquivamento de investigações quando houver outra apuração em andamento, com o objeto amplo o suficiente para abranger o objeto da investigação sendo arquivada.

Por outro lado, em 2017, o CNMP criou a figura do procedimento administrativo para o acompanhamento de políticas públicas. Não há instrumento melhor para conduzir investigações sobre questões estruturais, de onde, quando for o caso, podem surgir medidas pontuais de repressão.

Seria possível, desta forma, arquivar os inquéritos fragmentados e aproveitar suas informações úteis em novos procedimentos administrativos, instaurados para permitir a atuação estratégica e sistêmica.

O caminho da priorização

Um outro caminho para criar tempo para o trabalho focado das PJTC nos casos mais complexos seria criar critérios de priorização. E, com base nos critérios, uma regra que permitisse dedicação focada, aceitando como possível que outras investigações “na fila” esperassem por mais de quarenta dias, caso necessário.

Isso significaria sair da lógica multitarefas (às vezes, o proverbial malabarista de pratos do circo chinês) e deixar de atuar em casos menos prioritários, até a conclusão satisfatória dos casos mais graves. Com mais tempo dedicado, o prazo de conclusão, obviamente, seria reduzido drasticamente. Experiências de sucesso com esse tipo de trabalho, como por exemplo pelo TCU, poderiam ser emuladas.

Podem-se esperar alguns efeitos a partir desse caminho, na linha do objetivo do experimento. O primeiro deles é liberar tempo das equipes para o aprendizado e uso da atribuição criminal, quando a tática indicar ser o método mais adequado. Como os instrumentos da atuação criminal são mais efetivos do que os da atribuição cível, é possível esperar uma conclusão dos casos complexos em um prazo menor.

Em segundo lugar, a priorização pode levar naturalmente ao agrupamento estratégico dos inquéritos (o efeito do primeiro caminho acima, o do agrupamento temático de investigações com o foco pulverizado). De ambos os modos, os efeitos da sobrecarga de trabalho, representando risco para o experimento da atribuição criminal concorrente, estariam neutralizados.

Em seguida, os mesmos critérios de priorização poderiam ser aplicados não apenas para classificar os inquéritos em andamento. Indo além, poderiam ser alimentados por dados da realidade social de cada município, quem sabe reorientando as investigações em andamento (a mais importante de todas pode nem ter sido instaurada) ou direcionar o caminho e o foco das que virão.

O primeiro teste do plano

Logo nos primeiros contatos que tivemos com os promotores de justiça que lideram as PJTC candidatas a parceiras, tivemos lições importantes.

Percebemos a redobrada importância em neutralizar os efeitos dos incentivos desalinhados da Administração Superior e da Corregedoria. Para isso, precisamos de um compromisso formal de que a redução do acervo não levará à perda de estrutura de trabalho ou ganho mais inquéritos.

Por outro lado, precisamos do acordo da Corregedoria em permitir que a regra do máximo de quarenta dias para movimentação dos procedimentos seja suspensa para os inquéritos de menor prioridade. (Daí a importância do sandbox regulatório existente na regulamentação do trabalho do Laboratório de Inovação, que é um dos autores do projeto).

De certa forma, já contávamos com a necessidade de ambos os compromissos. (O plano do projeto conta com uma seção denominada “conta com quem e para quê”, que contempla ambos os acordos).

Mas faltava um componente, que existe no coração do desafio da inovação: a boa e velha trajetória de dependência e o medo do desconhecido. E a necessária ajuda para construir pontes que levam para além do habitual.

Além do conhecido

Foi o primeiro contato com os promotores que nos mostrou a importância maior do que pensávamos de um dos fatores mapeados: a falta de técnica desenvolvida para investigações com objetivo estrutural e foco estratégico em problemas de política pública.

Como dito, a sobrecarga de trabalho e a falta de priorização — também para o órgão de apoio técnico do MPRJ, com cerca de 100 profissionais — não criou condições para se construir um método capaz de resolver os casos mais complexos.

Diante da falta desse método, o cenário de uma PJTC otimizada, com poucos inquéritos, estratégicos, e com tempo permitido para dedicação exclusiva do promotor faz surgir um sentimento básico: o medo do desconhecido.

Para resolver esse dilema, precisamos ser honestos e dizer que não teríamos pernas e nem seria a missão da equipe do projeto desenhar as soluções para todas as linhas de atuação e inquéritos priorizados. (Apesar de, conceitualmente, a solução para cada linha poder ser uma bússola, tal como criada pelo Laboratório de Inovação).

Mas que seria, sim, responsabilidade buscar o compromisso do Grupo de Apoio Técnico e Especializado de providenciar equipe disponível para disponibilizar apoio às PJTC no desenvolvimento de cada nova linha de atuação estratégica.

Além disso, ficava o desafio de encontrar um promotor que conseguisse vencer o medo e a trajetória de dependência. Por sorte, encontramos. A resposta dele foi:

Essa questão do novo é o que me move. Eu fico extremamente decepcionado e chateado de trabalhar em um local em que fico remando e remando no mesmo lugar. Não tenho medo, não. Pelo contrário. Eu quero é isso mesmo (enfrentar o desconhecido).

Eu quero trabalhar e ver resultado. Não quero ficar vendo só papel. Vou correr atrás e fazer mestrado, fazer o que for, para conseguir pensar em soluções. E com certeza há lugares com soluções — a gente não vai reinventar a roda, não. O máximo que a gente vai fazer é dar uma adaptada nela.

Conclusão

Um dos principais riscos para um projeto de inovação é o viés de otimismo. É o que pode fazer com que a equipe do projeto, inconscientemente, não teste as premissas do plano, deixe de ser 100% sincera com o usuário e com si própria, deixando de aceitar e comunicar que há compromissos institucionais sem os quais não vale a pena seguir adiante.

A equipe do Mosaico confirmou, mais uma vez, a importância de não subestimar o medo do desconhecido e a força da trajetória de dependência no sentido contrário à inovação. E, com sinceridade e transparência, identificou um parceiro para o primeiro experimento.

O Projeto Mosaico está explorando novos métodos de trabalho e a comunicação é essencial nesse processo. Comente nesta publicação sugestões ou pensamentos sobre o texto, para colaborar na construção de um Ministério Público mais efetivo.

Equipe: Daniel Lima Ribeiro, Breno Gouvêa, Beatriz Ferreira, Marcelo Coutinho, Juliana Bossardi e Larissa Lima.

Este artigo não representa a opinião institucional do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, de seus órgãos ou integrantes, sendo de iniciativa e responsabilidade exclusivamente pessoal do autor.

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Daniel Lima Ribeiro
Projeto Mosaico

Ex-Coordenador e atual Fagulha do Laboratório de Inovação do MPRJ (Inova_MPRJ). Duke SJD. Curte correr e nadar. Curioso incurável.