Transformação digital sem usuário?
Parte 1 de 2 — Aprendizados na busca pela tática mais efetiva de transformação digital
Serviços simples de governo ou para organizações privadas, como recebimento e processamento de requerimentos, não exigem grandes desafios de transformação digital. Já em se tratando de medidas de alto valor estratégico como as de desenho, gestão ou controle de programas e ações, o papo é outro.
Para os casos mais complexos, que envolvem inteligência, a transformação digital tem produzido dois tipos predominantes de solução. São eles os painéis gerenciais de visualização (dashboards) e os sistemas de exploração e cruzamento de dados (georreferenciados ou não).
A experiência do Inova_MPRJ revelou algumas limitações nessas apostas.
Por um lado, nem é preciso dizer sobre a importância da preocupação com documentação, sustentabilidade, custo, atualização, confiabilidade e, por vezes, segurança dos dados que alimentam qualquer solução digital. Mas não é raro encontrar várias que parecem não observar esses cuidados.
Mas, é outra a limitação que surpreende na aposta em dashboards e de plataformas de exploração e de cruzamento de dados. Parece ser o descompasso da solução com a necessidade (ou a dor) de seu principal usuário. Essa simples indagação, sobre quem é o usuário e qual é sua realidade e necessidade de uso, fica esquecida em muitos casos.
O resultado pode ser a baixa adesão dos agentes às ferramentas e o consequente desperdício de horas de trabalho e recursos financeiros.
Este é o primeiro de dois posts que contam a experiência do Inova_MPRJ no assunto, as lições aprendidas e as novas apostas em andamento no tema da transformação digital em questões estratégicas.
Não há como fugir dela
O Projeto Mosaico, conduzido pelo Laboratório de Inovação (Inova_MPRJ) e pela Subprocuradoria-Geral de Planejamento e Políticas Institucionais do MPRJ teve início com o objetivo de explorar e experimentar um novo desenho de atribuições e tática de atuação para o combate à corrupção e na defesa dos direitos fundamentais pelas promotorias e procuradorias de justiça.
Iniciado o experimento (com o exercício de atribuição criminal concorrente pelas chamadas Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva), surgiu um obstáculo. A equipe do projeto se deparou com a natureza analógica e, por consequência, artesanal, atrasada com relação aos fatos, e com baixa gestão do conhecimento ou definição de prioridades da atuação criminal no MPRJ.
Sem enfrentar esse desafio, o resultado do experimento, com a nova atribuição e tática, não traria os resultados de eficiência esperados. A comparação poderia acabar sendo entre o péssimo e o muito ruim. Rever o escopo do projeto, por isso mesmo, foi imprescindível.
Trabalhar para melhorar a gestão do conhecimento e a efetividade da atuação, com tecnologia e dados, colocou a equipe do Inova_MPRJ em contato mais uma vez com o desafios da transformação digital profunda. E isso nos levou de volta a um dos aprendizados mais importantes do Laboratório.
“Me tira uma mala”
Era 2019 e o sentimento, de missão cumprida. O Inova_MPRJ havia acabado de concluir a primeira versão de seu método de trabalho, o Fluxo de Transformação. Um dos primeiros testes do método foi a prototipação de um sistema chamado Bússola.
O Bússola era imaginado como ferramenta que tinha como objetivo produzir inteligência e automação nos temas de atuação dos órgãos do MPRJ. Já faziam parte do projeto várias apostas no que o Laboratório via como ajustes necessários na forma dashbordizada e enciclopédica que a transformação digital estava seguindo.
Ao invés, no Bússola, o foco era a priorização de problemas, a automação das providências, a simplicidade da experiência do usuário e a economia de visualizações de dados. Para isso, pensou-se em um processo gradativo de construção de indicadores, com base nas prioridades da atuação.
O Inova_MPRJ, então, chamou usuários para a validação da concepção da ferramenta. O resultado foi uma primeira surpresa. Ao final da explicação da da proposta e dos slides que mostravam como o projeto seria desenvolvido, o Laboratório recebeu de presente a seguinte reflexão de um dos usuários:
“Vou ser sincero com vocês: parece ser um projeto super interessante. Mas deixa eu contar como é a minha realidade. Lá é tanto trabalho, que é como se eu carregasse várias malas para onde vou. É uma montanha de inquéritos e processos que preciso trabalhar. Portanto, serei parceiro do projeto se vocês me disserem que isso aí vai me ajudar a carregar uma mala a menos”.
A reflexão indicava algo importante sobre o real valor de se entender a realidade do agente, cuja ação queríamos transformar. Não estávamos vendo o problema suficientemente sob a perspectiva de seu dia a dia. Um dashboard ou ferramenta que permitisse (e exigisse) o cruzamento de dados e análise de tabelas de informação teria pouco ou nenhum valor, dada a realidade do usuário.
Percebemos que precisávamos realizar um teste mais próximo da realidade, identificando melhor as necessidades que a ferramenta precisaria resolver.
Dobrando a aposta e… falhando
Em uma nova abordagem, o Inova_MPRJ reafirmou a crença no valor da automação, agora reforçada na ideia de “design primeiro” (design first) e na economia de cliques.
Assim, a equipe construiu uma maquete clicável do Bússola no Figma, para a validação da concepção (e interface) da ferramenta com os usuários. Jogou fora o powerpoint e a simples demonstração de telas estáticas e, em seu lugar, ficou um sistema simulado para testar com as equipes que dele fariam uso.
O teste deu certo e validamos a aposta de valor — se construído, o sistema de fato eliminaria malas de trabalho dos usuários. Ainda assim, na passagem do protótipo para a ferramenta, o resultado foi um fracasso — por duas razões.
A primeira: caímos na armadilha e fomos vítimas da vertigem do Big Data. Mesmo partindo de uma priorização teórica de indicadores, não resistimos à tentação de abocanhar bancos de dados inteiros das unidades fiscalizadas pelo MPRJ, como hospitais públicos. O custo para criar acesso e entender cada banco, com milhares de tabelas nem sempre bem documentadas, não permitia a escalabilidade da tática.
A segunda razão foi a falta de mãos para desenvolver o protótipo que desenhamos. Por um lado, sobrevivemos a um dos grandes riscos que correm os laboratórios de inovação: ceder à tentação de desenvolver sistema.
O Laboratório que resolve mergulhar no trabalho do desenvolvedor, deixa de ser laboratório e passa a ser TI. Mas, resistindo à tentação, cria-se um dilema: ninguém quer criar filho bonito dos outros sem levar todo o crédito pela criação. Não desnaturamos o laboratório, mas pagamos o preço de ficarmos órfãos de desenvolvedor.
Mais um projeto que parou no protótipo.
Continua…
Mesmo assim, o Inova_MPRJ não desistiu. Com o Projeto Mosaico, o Laboratório tem uma nova chance para superar as duas falhas que vivenciou e, com mais esses aprendizados, encontrar uma forma promissora de transformação digital da atividade-fim do MPRJ.
Para a nova fase, o Laboratório levou o principal aprendizado: complexidade de interface e profundidade de análise de dados pode ter o seu valor — mas nunca como principal, para todo e qualquer usuário.
É interessante oferecer ao usuário a opção de abrir o capô do carro e entender/mexer no motor. Mas nunca se pode oferecer apenas isso, quando a principal necessidade e preocupação do usuário é usar o veículo para chegar do ponto A ao B da forma mais fácil e menos custosa.
O que você acha? Dashboards e plataformas de cruzamento de dados funcionam para o seu usuário? Continue lendo o que fizemos a respeito, no próximo post.
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O Projeto Mosaico está explorando novos métodos de trabalho; e a comunicação é essencial nesse processo. Comente nesta publicação sugestões ou pensamentos sobre o texto, para colaborar na construção de um Ministério Público mais efetivo.
Equipe: Daniel Lima Ribeiro, Juliana Bossardi, Breno Gouvêa, Letícia Albrecht e Larissa Lima
Este artigo não representa a opinião institucional do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, de seus órgãos ou integrantes, sendo de iniciativa e responsabilidade exclusivamente pessoal do autor.