Como se tornar o Bingo

Ou como se deu o processo de brand persona do filme

Anderson Costa
Projeto Poperô
6 min readOct 3, 2017

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Nos últimos meses eu enfrentei um dilema ao mudar de ramo de trabalho. Ainda trabalho com mídias sociais, mas desta vez voltadas para o entretenimento graças ao portfolio de clientes que atendo. Eu achava que manjava das social media tudo, até lidar com o cinema. É um universo completamente atípico de tudo, com seu próprio timing de ações e reações e com um público muito difícil. Mas em essência, é um público que quer — e demanda por — universos mais pop dentro das obras que consome. E esse mojo pop precisa percorrer tudo, inclusive a comunicação que os filmes usam para atingir sua audiência e convence-los a comprar ingressos.

E nesse cenário todo tivemos um cliente inusitado no começo do ano. A Sioux recebeu a tarefa de cuidar do conteúdo de redes sociais de Bingo — O Rei das Manhãs, filme produzido pela Gullane Entretenimento e distribuído pela Warner Bros. Pictures. Num processo de entendimento do cliente, seguimos o caminho de tornar este um filme muito mais pop do que nostálgico. Era um desejo do próprio Daniel Rezende, diretor do filme (estreando neste ofício, ou seja, sofrendo pressão de todos os lados) que a história baseada no ator que fazia o Bozo fosse algo palatável para todas as idades, e não apenas à aqueles que viveram os anos 80.

Então partimos para a concepção de moodboards, planejamento, estratégia de pílulas de conteúdo (como a já famosa pílula do Wagner Moura, por exemplo) que foram pensadas desde o começo das discussões — boa parte delas, ressalte-se, ideia da própria produtora. A Gullane entendeu que esse filme merecia a devida atenção em social, e que as pessoas se envolveriam em conteúdo produzido para essas plataformas. A armadilha da nostalgia foi evitada quando possível e trouxemos um universo muito mais pop ao entendimento da história.

Foi um job muito divertido de fazer e um grande orgulho para nós participar desse momento histórico do cinema nacional — neste momento, Bingo é o candidato brasileiro a uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e à premiações no festival Goya, da Espanha.

Mas independente do desempenho do filme e do trabalho feito nele, quero falar de um processo individual dele: a concepção de uma brand persona.

O Bingo fala

Geralmente você não desenvolve brand personas para filmes. Ainda mais se eles são divulgados apenas em páginas de produtoras ou distribuidoras. A linguagem e a comunicação criadas nessas interações são processos mais genéricos e orgânicos que se criam com o tempo, com tentativa e erro, e baseadas em tratamento de problemas com os consumidores. Mas a gente acredita que dá pra ter personalidade para um filme também. É um trabalho que começamos a testar no primeiro filme da Warner que trabalhamos, O Vendedor de Sonhos (de Jayme Monjardim, com produção da Filmland International) e que decidimos intensificar no Bingo: ele teria uma voz própria no Facebook. E se você já viu o filme, imaginou o tom de voz dele.

O processo de concepção da brand persona do Bingo passou por etapas diferentes das habituais. Além dos atributos da personalidade, procuramos também personagens de filmes populares que nos remetessem ao Bingo e seu jeito de lidar com as coisas no filme. Isso definiu muito a linguagem das interações e comunicações tratadas porque são comportamentos que estão na cabeça das pessoas. Desde O Lobo de Wall Street até Deadpool. Era arriscado. Mas a gente viu o filme e entendeu logo de cara o tom da coisa.

Todos esses ingredientes nos deram um dos trabalhos mais intensos que já realizamos. Toda a comunicação do Bingo no social foi tratada em primeira pessoa, como se o Bingo assumisse a fanpage. O Bingo respondia os comentários como se fossem as cartinhas dos amiguinhos do programa, ou mesmo amigos que ele acabaria fazendo em um barzinho da Augusta após o programa. Recebemos até fanarts de seguidores empolgados. Brincamos com o medo de palhaços, a confusão com filmes de terror e até com o nome do filme.

Vivendo o personagem

Durante a concepção dos conteúdos, o grande desafio foi entender até onde podíamos ir.

Acredito que um bom trabalho de community management passa por três pilares de atuação: liberdade, agilidade e responsabilidade. Você precisa ser livre para agir como achar melhor dentro do que domina do cliente e da comunicação a ser tratada, ágil para tratar de interações no timing correto independente do caráter delas, e responsável para que essas ações sejam condizentes com o propósito de marca e com o público com o qual você interage.

O Bingo tem uma personalidade muito ácida, caótica e brincalhona, que podia facilmente ser confundida com alguém permissivo e desrespeitoso — o que não é uma inverdade com o personagem, mas sem o conhecimento da história esse comportamento seria mal entendido facilmente. 90% do trabalho foi curtido pelos fãs que chegavam, mas acabamos enfrentando também pessoas que queriam passar do limite da brincadeira — entendendo que o palhaço ali retratado também passava esses limites. Essa é a hora de colocar a persona de lado e agir com bom senso, delimitando a brincadeira à aquele momento.

Esse trabalho de vestir um personagem de um filme numa brand persona é quase atuar num RPG, com a diferença de que você não é o ator do filme — é quase um impostor, um doppelganger que queria estar lá, mas se contenta em repetir os diálogos e sensações que o personagem vive, sabendo que o que desenvolve não mudará o produto — o mesmo está pronto esperando a estreia. Você imerge num processo de empatia. Eu me sentia o Bingo. Eu me sentia emulando uma sensação de diversão e anarquia ao meu redor, ao mesmo tempo sem deixar de transparecer que há um dilema nessa personalidade: ser reconhecido e amado por um público que não sabe quem ele é. Me peguei repetindo piadas no dia a dia. Me peguei ouvindo a trilha sonora do filme muitas e muitas vezes. Me peguei defendendo aquele personagem mesmo com seus defeitos. Dentro de tantas máscaras que vestimos no cotidiano, aquela era mais uma.

Hoje eu entendo que esse processo, que poderia ser maléfico, beneficiou muito todo o trabalho feito. Bingo foi além de um roteiro de perguntas e respostas prontas. Testou, brincou, provocou risos, entrou em conversas alheias — em alguns casos, gerou mais reações do que o próprio post que publicou.

E tiramos lições importantes:

  • É bom ser diferente e não dar o mesmo apelo de sempre à todas as campanhas das quais participamos, por mais que o público seja semelhante.
  • Toda marca tem sua persona e sua identidade, mas bancar isso durante o processo e mesmo assim saber lidar com imprevistos é a parte mais difícil.
  • Testar, mesmo com o carro em movimento, pode te dar bons resultados.

Dito isso, eu queria agradecer à toda a equipe da Gullane e da Warner Bros. Pictures pela possibilidade de trabalhar neste lindo projeto. Ao Daniel Rezende e toda sua equipe por conceber essa grande obra da nossa cultura pop. Ao time Sioux (Natalia Karla, Camila Smid, Lara Rodrigues, Bianca Castanho, Fernando Teixeira) por enlouquecerem comigo neste job. E a você, que chegou até o fim deste texto.

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Anderson Costa
Projeto Poperô

Estudando colaboração e cultura pop. Cosplay de mim mesmo na falta de verba.