“Lave-me, Redentor, e eu serei mais alvo que a neve!”

Ana Bezerra Felicio
projetoagostinhas
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4 min readDec 16, 2022

Pétalas de Sangue — Ngũgĩ wa Thiong’o

1977

Ngũgĩ wa Thiong’o, queniano, é um dos escritores africanos mais aclamados do período pós-colonial. Desde o início dos anos 1960, Ngũgĩ escreveu romances, peças de teatro, ensaios críticos e um livro de memórias — tanto em inglês quanto na língua indígena Gikuyu do Quênia — todos caracterizados por uma preocupação aberta com a política de seu país. Ele fazia parte da geração que atingiu a maioridade enquanto o Quênia lutava para se libertar do legado do colonialismo, Ngũgĩem sua obra criticou veementemente a liderança pós-colonial em seu país.

Literatura africana contemporânea é um mundo à parte em que me introduzi há pouco tempo. Frequentei o curso chamado “Topics in African Literature:Africa — In Theory” do professor Mark Sanders na New York University, em que pude ler dentre outros Ngũgĩ… Com certeza, uma disciplina que ampliou minha visão de África, de literatura e levantou problemas e questionamentos acerca da pós-colonialidade. Existe um mundo, todo um mundo de estudos, de crítica à modernidade bem como uma compreensão de tudo o que envolve e envolveu o colonialismo pensado,escrito e teorizado por autores africanos. Ah, se parássemos para ler ao menos um deles!

O romance “Petals of Blood”, de 1977, rendeu-lhe problemas particulares por retratar um Quênia pós-colonial dilacerado pela corrupção e desilusão. O romance, que atribui grande parte da culpa pela desordem do país aos líderes políticos surgidos desde a independência, conta a história de quatro personagens, todos presos por homicídio: um professor e militante sindical chamado Karega, uma ex-diretora de escola chamado Munira, um lojista meio indiano chamado Abdulla e uma ex-prostituta e garçonete, Wanja. Na época da publicação do romance, a peça de Ngũgĩ, Ngaahika Ndena (Eu me casarei quando quiser), em co-autoria com Ngũgĩwa Mirii, foi banida como incendiária. Ngugi logo se tornou vítima de uma campanha oficial de assédio. Sua casa foi revistada, sua biblioteca de livros confiscados e foi preso sem julgamento por um ano. Ele também perdeu seu cargo na Universidade de Nairóbi.

Em certo momento nesse romance, uma dos protagonistas, Munira, relembra de como era a escola da Missão Siriana:

Segundo ela relata, a escola, no Quênia dos anos 1940, tinha o objetivo educacional de tornar os garotos e garotas que lá iam em “Europeus negros”, Munira tem memórias do Rev. Ironmonger como um tipo diferente de branco, ele era gentil tanto que às vezes os alunos nem lembravam que ele era branco. O reverendo Ironmonger se aposenta e volta para a Inglaterra para morrer lá, a escola entra sob uma nova direção que não suporta ideia dos alunos serem

“Europeus negros”, mas “verdadeiros africanos”, dessa maneira o novo diretor Cambridge Fraudsham muda os uniformes, porque africanos de verdade não usam calça, só shorts, não vestem sapatos a não ser no dia do Senhor e não comem arroz, mas só feijão e insetos.

No meio dessa mudança Munira traz a seguinte lembrança de como eram as manhãs na escola:

“Ao mesmo tempo tínhamos que crescer e nos fortalecer em Deus e no Império. Foram os dois que libertaram o mundo da ameaça de Hitler. Praticávamos muito esporte, banhos frios às 5 da manhã. Saudávamos a bandeira Britânica toda manhã e toda noite, ao som da marcha militar das cornetas e tambores da banda da nossa escola. Então todos marchávamos em filas militares ordenadas até à capela para entoar ao nosso Criador:

“Wash me, Redeemer, and I shall be whiter than snow.”

(Lave-me, Redentor, e eu serei mais alvo que a neve!”.)

Então orávamos pela continuação do Império que havia destruído o mal satânico que havia irrompido na Europa para tentar os filhos de Deus (nazismo).” — Ngũgĩ 1977, p. 29

É possível desvirtuar a Palavra de Deus? É possível desvirtuar um Hino cristocêntrico e bíblico? Não só é possível como já fizeram isso.

Sabe, eu não tenho muito a comentar sobre esse texto acima.

Acho que ele é bem forte, é de outro país sim. É de colonizadores britânicos e Quênia que estamos falando, mas é de fé cristã que estamos falando.

Tem gente séria falando de racismo e fé cristã Brasil afora. Acompanhe essas pessoas siga o Projeto Agostinhas em todas as redes sociais, leia o livro recém lançado pela Editora Quitanda “O quão africano é o cristianismo?”, leia o livro Uma leitura negra de Esau McCaulley (sobre o qual na página das Agostinhas temos conteúdo à exaustão).

LIVRO DE NGUGI “Petals of Blood”

Outros livros em português de Ngũgĩ

(1)Um grão de trigo, 2015.

(2)Sonhos em tempo de guerra, 2015.

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Ana Bezerra Felicio
projetoagostinhas

PhD candidate in linguistics and classical studies at the State University of Campinas in Brazil. My research is on the emotions in Senecan philosophy and drama