R de racismo, ou de ressentimento

Ana Bezerra Felicio
projetoagostinhas
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5 min readJun 1, 2020
Photo by Clay Banks on Unsplash

Quando falamos de racismo é muito fácil encontrarmos reações extremas na discussão do tema.

Por um lado há os negacionistas, muitos brasileiros sequer reconhecem a presença do racismo em seu país, mas se comovem com acontecimentos ao norte do nosso continente. Por outro lado, muitos dos que abordam o tema, por estarem pessoalmente envolvidos com o assunto, deixam-se levar pelo ressentimento e pela vontade de verem o problema (histórico e complexo) ser resolvido em pouco tempo.

Sobre os negacionistas, eu só posso aconselhar ao leitor que vá procurar informações que não faltam, sobre a história da escravatura no Brasil. Só deixo aqui alguns números para a reflexão: somos um país jovem de 520 anos; desses, 388 anos foram anos em que a escravidão era legalizada, isso quer dizer que por mais de 3 séculos e meio uma boa parte da população residente no país não era livre e cidadã. Isso quer dizer que mais de 70% da nossa história foi marcada e guiada por esse ordenamento completamente diferente do que conhecemos hoje. O renomado jurista Modesto Carvalhosa mostra que é muito difícil considerar a justiça e a lei no Brasil antes 1888 porque, segundo ele, não é plausível comparar legislaturas atuais com o Brasil que tinha a escravidão legalizada. 3 séculos e meio de história escravista não se resolvem em 132 anos.

Meu texto porém é sobre os ressentidos e é para os ressentidos. O sofrimento faz parte da vida humana, não é algo a ser negado e enterrado no fundo da alma. Normalmente diante de injustiças que sofremos pessoalmente, sentimos raiva e desejamos que nos seja feita justiça, mas, ao querermos fazer justiça com nossas próprias mãos, tornamo-nos justiceiros, vingativos e não justos. Geralmente quando algo nos faz sentir raiva é porque nos importamos com aquilo. A nossa alma passa por noites muito escuras diante do sofrimento.

Um homem observa o fogo de um edifício em Minneapolis, na sexta-feira 29/05/2020. CHANDAN KHANNA / AFP

Diante do assassinato de George Floyd, os protestos nos EUA desembocaram em algumas cidades em violências, incêndios e depredações de bens públicos e privados. Sem muita surpresa, vejo pessoas que justificam essa violência devido a muitos anos de repressão e sofrimento da população negra norte-americana. Diante desses acontecimentos frases-chavão atribuídas a Malcom X circulam pelas redes sociais: “Se você não está pronto para morrer por ela [pela justiça], coloque a palavra “liberdade” fora do seu vocabulário “. Ou também:
“Seja pacífico, seja cortês, obedeça às leis, respeite a todos; mas se alguém colocar as mãos em você, mande-o para o cemitério.”

Eu vejo que o ressentimento é a comida de movimentos políticos. O ressentimento é a dor do corpo diante de uma injustiça, mas é o alimento dos piores movimentos políticos que existem.

“Assim, não devemos nos ressentir com o fato de nos ressentirmos, mas aceitar isso como parte da condição humana, algo a ser administrado juntamente com nossas outras alegrias e aflições. Contudo o ressentimento pode ser transformado em emoção dominante e causa social, e portanto, se libertar das amarras que normalmente o contêm. Isso acontece quando ele perde a especificidade do seu alvo e se dirige à sociedade como um todo.” [1]

A abolição da escravatura aconteceu em 1888, mas alguns estados brasileiros, como o Amazonas, aboliram a escravidão em 1884.*Créditos da imagem: Irisphoto1 e Shutterstock

É interessante que, aqui estou falando de racismo, mas poderíamos levar esse entendimento sobre o problema do ressentimento a vários grupos da nossa sociedade. Há, por exemplo, aqueles que acham que tudo é válido e necessário para que a corrupção seja extirpada do Brasil (ou para que seu ideal de Nação seja implementado), até mesmo o fechamento do Congresso Nacional e do STF! A causa se perde, pois o ressentimento é dirigido a qualquer um que naquele momento seja determinado como o inimigo da nação.

“Tal pessoa não busca negociar com as estruturas existentes, mas sim ganhar o poder total, a fim de abolir as próprias estruturas.” [1]

Você se surpreenderá se eu lhe disser quem é o autor dos trechos citados acima e abaixo [1], você tentará aplicar esses conceitos aos grupos violentos e intolerantes que você mais odeia, somos assim, somos humanos e geralmente vemos os problemas dos outros enquanto ignoramos os nossos. A reação ao racismo que tenta, de toda forma manifestar de maneira que não seja pacífica suas causas e razões não é, ao meu ver, a melhor maneira de lidar com a situação. O que acontece quando essas justificativas são aceitas?

“Tentará destruir o inimigo, concebido em termos coletivos, como classe, grupo ou raça que até então controlou o mundo e que, agora precisa ser controlado. E todas as instituições que concedem proteção àquela classe ou lhe dão voz no processo político serão alvo de sua raiva destruidora.” [1]

@obrunobraga via Twitter

O primeiro efeito imediato na sociedade de tais atos, é que nos desviamos do assunto principal, que é o problema do racismo. Sobre a relação do cristão com esse assunto, Izabella Vicente escreveu um texto maravilhoso, recomendo a leitura.

O segundo efeito, que quero ressaltar aqui, é o que o ressentimento faz na vida do ressentido. A vida se torna uma constante vingança, pois o ressentimento se torna uma “postura existencial” [1]. Ninguém merece viver existencialmente ressentido, se é que essa construção é possível na língua portuguesa. Eu encontrei meu caminho para a cura em Cristo Jesus e estou trilhando esse caminho para a cura, pois não temos em nossas mãos as ferramentas necessárias para que o pecado de outra pessoa seja extirpado, e identifico que a pulsão para que os outros sejam afetados com o mal que sofremos é a reação humana mais primitiva e natural. Essa luta interna não é só minha, é de todos aqueles que sofrem:

https://twitter.com/staut_ana/status/1267246159145439232?s=20

Há um caminho possível interno e externo para que alguma justiça seja feita. O caminho interno é duro, mas necessário, dentre outras coisas, a igreja brasileira pode restaurar conceito de Hospitalidade cristã, sobre o qual Igor Miguel escreveu com maestria.

Minha proposta, para mim mesma e para quem se propuser a trilhar verdadeiramente esse caminho, é que nós não nos esqueçamos do caminho interno, ao buscarmos por justiça do lado de fora. Pois a Palavra de Deus nos mostra um caminho possível para que colhamos justiça.

E aqueles que são pacificadores plantarão sementes de paz e ajuntarão uma colheita de justiça. Tiago 3:18

[1] Roger Scruton. Tolos, fraudes e militantes: Pensadores da Nova Esquerda. Record Editora. 2018.

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Ana Bezerra Felicio
projetoagostinhas

PhD candidate in linguistics and classical studies at the State University of Campinas in Brazil. My research is on the emotions in Senecan philosophy and drama