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A Sociedade Líquida

Aline Santos
ProjetoCTA

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No início, Deus criou o homem à sua imagem e lhe deu as Suas leis básicas de existência: o culto e o descanso; encher, subjugar e dominar sobre toda criação; casar, procriar e trabalhar.

A criação envolve o domínio físico e as estruturas da sociedade em um grande conjunto. A ciência, a política, as artes, a economia, a medicina e todos os demais âmbitos da vida foram criados por Deus. Pela soma da revelação do Senhor (Palavra) e do dom da sabedoria, temos as normas gerais e o discernimento para lidar com toda a realidade.

Porém, nos deparamos com a Queda e o pecado corrompeu toda a vida que conhecemos. Segundo Hall e Burton (2009), “nossa cultura econômica herdada é caracterizada por corrupção, labuta, opressão, vingança e ira divina. A condição econômica que uma vez foi harmoniosa suporta hoje iniquidades e desarranjos extremos.”

Com intuito de elucidação, Zygmunt Bauman considerou a Segunda Guerra Mundial como um ponto de divisão entre dois períodos: o pré-guerra, a modernidade sólida e o pós, a modernidade líquida. Este último e atual período diz respeito sobre a fragilidade e a maleabilidade das relações sociais, econômicas e de produção.

Uma sociedade líquida, por sua vez, carrega uma identidade fadada à centralização, ao individualismo e a obsessão por valores, na qual o meio passa a ser o foco da ação e os fins se tornam objeto de inquietude.

O indivíduo líquido pode se tornar qualquer um e segundo Bauman (1999),

“Cabe ao indivíduo descobrir o que é capaz de fazer, esticar essa capacidade ao máximo e escolher os fins a que essa capacidade poderia melhor servir — isto é, com a máxima satisfação concebível. Compete ao indivíduo “amansar o inesperado para que se torne um entretenimento.”

O indivíduo encontra-se, então, em um processo constante e interminável de ser alguém, fazendo com que a incompletude se torne uma característica da identidade líquida.

Bauman (1999) nos diz que em uma sociedade líquida, o sujeito torna-se um objeto, pois existe uma busca por prazer a qualquer custo. Coelho (1981) diz que tudo pode ser julgado como coisa/objeto, até mesmo o homem, porque até ele se transforma, processo esse chamado de reificação. “O homem reificado é alienado”, ou seja: “alienado com o trabalho em troca de moeda que não vale seu esforço, alienado pelo produto do seu trabalho que ele não pode comprar porque o salário não é suficiente e alienado com todo o resto a sua volta.”

Em uma modernidade líquida, as relações econômicas sobrepõem as relações humanas, onde a lógica de consumo entra no lugar da lógica moral. Ou seja, as pessoas passam a ter os seus valores pelo o que elas possuem e não pelo o que elas são. O consumo é uma ordem — e de preferência, o consumo irracional.

Sendo assim, temos um cenário no qual uma sociedade trabalha em excesso para comprar produtos e que não tem tempo para questionar o que está sendo consumido, pois está apenas seguindo uma cultura de massa. Segundo Coelho (1981), a cultura de massa “é a soma de uma economia de mercado com uma sociedade de consumo”. Bauman (2007) explica que o consumidor saciado significa estagnação econômica, então a cultura de consumo exige que nossas necessidades sejam insaciáveis. Para Coelho (1981),

“Assim, e partindo do pressuposto (aceito a título de argumentação) de que a cultura de massa aliena, forçando o indivíduo a perder ou a não formar uma imagem de si mesmo diante da sociedade, uma das primeiras funções por ela exercida seria a narcotizante, obtida através da ênfase ao divertimento em seus produtos. Procurando a diversão, a indústria cultural estaria mascarando realidades intoleráveis e fornecendo ocasiões de fuga da realidade.”

Na perspectiva da teoria econômica, segundo Chauvel (1999), “a satisfação resulta de um processo essencialmente racional, que busca equacionar da melhor forma possível duas variáveis: a renda disponível e o preço de bens e serviços a serem adquiridos.”

Visto que o trabalho é uma ordenança do Senhor, Calvino dizia que as ocupações, as profissões e os ofícios são atividades sagradas e devem ser sempre boas e lucrativas para o bem comum. O lucro, segundo M. Goheen e C. Bartholomew (2008) “é um aspecto legítimo quando está devidamente subordinado a outras intenções” e não podemos transformá-lo em nossa razão última para não cairmos em idolatria. Devemos tratá-lo com mordomia.

Horton (1993) diz que Deus colocou Adão no Éden para que ele fosse mordomo/administrador e não um tirano. Deus nos permite ter o lucro (que não é fruto de mérito próprio, mas da permissão bondosa do Senhor) e devemos administrá-lo de maneira justa e que O glorifique, usando para além de nós mesmos.

De acordo com o Catecismo de Heidelberg, quando depositamos nossa confiança em qualquer coisa que não seja Deus, estamos ferindo o Seu primeiro mandamento: “não terás outros deuses além de mim”. Ao acreditar que o lucro, o dinheiro e produtos são a nossa esperança caímos em idolatria.

O descanso também é uma ordenança de Deus. O Senhor não deseja escravizar o trabalho e a produtividade. Devemos ter nosso tempo para adorá-Lo, para contemplar a criação, para estar reunidos quanto igreja e entender que o trabalho não é a única atividade importante para nós. O descanso é tempo de adoração e o contrário disso é idolatria.

A mobilidade dos aparelhos digitais tem cada vez mais nos escravizados, pois transformam qualquer ambiente em um ambiente de trabalho e se não compreendermos a ética do descanso, não nos livraremos dos antolhos. De acordo com uma pesquisa da CupoNation (2021), os brasileiros gastam em média quase 5h por dia em redes sociais.

Ademais, com surgimento das redes sociais, nossas relações ganharam um nome: conexões. Quanto mais conexões, melhor! Mais destaque, mais influência. Debord (1967) diz que “tudo que aparece é bom e tudo que é bom aparece” e as pessoas consomem o que se destaca de maneira passiva, sem questionar o que está sendo exposto.

A midiatização do que é bom instiga desejos e necessidades nas pessoas, e Debord (1967), diz que “quando a necessidade é sonhada, o sonho se torna necessário”. Debord (1967) explica que “o espetáculo é quem dita suas próprias regras”, “ele é o seu próprio produto”, “a realidade nasce no espetáculo e o espetáculo nasce na realidade”. Conforme Horton (1993),

“Acabamos enchendo nossa vida com coisas das quais não temos a menor necessidade porque deixamos os slogans e imagens nos influenciarem. (…) aspiramos aos mais recentes produtos que prometem a mais recente cura para o que o mundo decidiu ser o nosso problema mais recente.”

O décimo mandamento de Deus é sobre a cobiça e refletindo sobre o poder da conectividade e da mídia, que tipo de padrão de vida estamos endossando? Quais são os desejos dos nossos corações? Devemos ter em mente que o pecado não destrói a comunicação, mas por meio dela compartilha uma falsa visão de mundo e corrompe a economia com ganância e egoísmo.

O Catecismo Maior de Westminster nos fala sobre os deveres exigidos no décimo mandamento e um deles é o contentamento com a nossa condição, mas, pelas marcas do pecado, dentro de uma cultura de consumo, essa exigência não é cumprida devido a incompletude da identidade líquida e a necessidade de estar sempre em movimento. Mais uma vez, os fins são motivos de ansiedade.

Toda a nossa realidade sofre com os efeitos corrosivos da Queda. Nascemos sob o pecado, mas somos regatados por Jesus Cristo e se cremos Nele, devemos dar testemunho do seu senhoril em tudo o que fazemos, falamos, agimos. Goheen e Bartholomew (2008) reforça que “Se cremos que a salvação é realmente abrangente, precisamos corporificar a salvação de Cristo em todas as áreas da vida e cultura humanas.”

Como falado, a Palavra de Deus nos direciona para uma vida ética e segundo Turner (2000),

“O que a Bíblia nos fornece é, na verdade, mais substancial do que um minucioso manual. Ela apresenta doutrinas básicas que podem ser aplicadas a qualquer forma artística em qualquer época (…). As doutrinas da criação, queda e redenção são fundamentais para toda a compreensão cristã.”

As Escrituras exigem que nos responsabilizemos pelo cumprimento dos nossos deveres para com Deus e como cristãos inseridos em uma sociedade líquida que propaga cada vez mais a cultura do consumo, devemos entender e aceitar a autoridade e o poder de Deus sobre o nosso contexto pessoal, pois, somente a partir disso, que nossas escolhas podem ter de fato um significado e uma perfeita completude.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. 1ed. Zahar; 2001,

COELHO, Teixiera. O que é indústria cultura. 16ed. Brasiliense; 1996.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. 1ed. Contraponto; 1997.

LEVY, Pierre. O que é o virtual. 1ed. Editora 34; 1996.

HALL, David; BURTON, Matthew. Calvino e o Comércio. 1ed. Cultura Cristã; 2009.

HORTON, Michael S. A Lei da Perfeita Liberdade. 1ed. 1993.

TURNER, Steve. Cristianismo Criativo?. 1ed. 2000.

GOHEEN, Michael W.; BARTHOLOMEW, Craig G. Introdução à Cosmovisão Cristã: vivendo na intersecção entre a visão bíblica e a contemporânea. 1ed. 2008.

CHAUVEL, Marie Agnes; A Satisfação do Consumidor no Pensamento de Marketing. XXIII EnANPAD, Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Administração, Foz do Iguaçu/PR, 1999.

PORFÍRIO, Francisco. Modernidade Líquida. Julho de 2016. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/sociologia/modernidade-liquida.htm. Acesso em 19 de jul. de 2021.

SIQUEIRA, Vinicius. Individualidade — Modernidade Líquida. Novembro de 2016. Disponível em: https://colunastortas.com.br/individualidade/#3. Acesso em 19 de jul. de 2021.

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