Barbie e o fantástico mundo real

Pensando indústria e humanidade para além da vida de plástico

Carolina Pinheiro
DOSE
7 min readDec 16, 2023

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Eu pensei em mil motivos para não escrever sobre Barbie até perceber que deveria. Não porque minhas palavras terão impacto ou importância primordial na vida de alguém, mas pela minha necessidade de expurgar todas as provocações que senti e assenti assistindo ao filme mais aguardado do ano.

Aliás, antes mesmo da estreia, o longa já dava o que falar. Seu marketing massivo construiu uma gigante onda pink e, apesar da estratégia ter claramente arquitetado este fenômeno, a dimensão da aderência do público deve ter espantado até o mais otimista dos marketeiros. Cultura pop arrastando multidões vestidas a caráter para o cinema não é nenhuma novidade, mas dessa vez aliens e super-heróis deram lugar a um ícone de infância particularmente feminino. Pela primeira vez, vimos um evento desta magnitude específico para minas, monas e manas de todo canto. Assim, das mais variadas vitrines até combo de fast food, ficou tudo cor-de-rosa.

Como esperado, junto à euforia daqueles animades para viver esta experiência, não faltou quem se queixasse diante de suposto exagero e tamanha frivolidade. Nossa, que ridículo uma mulher feita se vestir assim para ver um filme de boneca… Será mesmo? Homens continuam nutrindo seus interesses infantis durante a vida adulta e isso sequer se torna uma pauta. Na verdade, para eles é visto como natural: meninos serão sempre meninos. Os últimos vinte enlatados de ficção científica e seus fãs fervorosos não deixam dúvidas…

Convenhamos, se Barbie funcionasse apenas como um presente nostálgico para as mulheres, reivindicando interesses simbólicos “de menina” como moda e maquiagem, já seria o filme do ano. No entanto, para a revelia de alguns, a obra em si esbanja valor artístico de verdade. A direção de Greta Gerwig, com a produção da protagonista Margot Robbie, proporcionou autenticidade e inovação a uma história que poderia já nascer batida. Além disso, a montagem só reforçou esse zelo, incluindo elementos 2D e construindo cenários reais na era da tela verde. Por sinal, fotografia, figurino e trilha sonora foram verdadeiros shows à parte.

É incrível como cada escolha ampliou o encanto da narrativa. Meus olhos vibraram durante aquela sequência inicial mágica. O ato de brincar foi traduzido de maneira precisa, mas ao mesmo tempo tão sutil quanto a cena da Barbie flutuando — afinal, ninguém coloca a boneca para descer escadas. Eu me senti criança novamente, fascinada com os detalhes e a vida na Barbielândia. Já o roteiro agradou a minha expectativa de mulher adulta ao realizar escolhas que permitem com que o filme subverta o óbvio sem cair em contradição. A Barbie loira padrão, denominada de estereotípica, é tão Barbie quanto todas as outras que exalam representatividade com suas fisionomias diversas.

Em síntese, o objetivo primordial do longa é justamente responder a principal crítica ao brinquedo: seu efeito nocivo para a formação da autoestima feminina. Assim, a perspicácia do enredo se torna motivo de aplauso. Criar uma surpreendente amálgama de nuances com reflexão, humor e uma autoconsciência ímpar não parece tarefa fácil. Barbie constrói sua teia de subjetividade da maneira mais delicada e divertida possível. Verdade seja dita, nada mais típico se tratando do trabalho e do talento de mulheres.

No entanto, nem tudo são flores de plástico. O filme possui limitações óbvias, sendo uma mega produção hollywoodiana encomendada por uma empresa multibilionária. Embora traga um nível inesperado de piadas depreciativas sobre a própria Mattel, o propósito do lucro impera sobre qualquer tentativa de conscientização. As críticas ao patriarcado, elemento central da obra, se inserem em uma perspectiva liberal sem espaço para problematizações mais complexas, sobretudo de classe. No geral, Barbie funciona como uma espécie de introdução ao feminismo — e não vejo como poderia ser diferente. Verdade seja dita: a superficialidade inegável não impede o plantar de reflexões importantes. É preciso reconhecer o efeito cultural e quiçá catártico da obra.

A alegoria da boneca tomando consciência de que, no mundo real, mulheres são oprimidas e subjugadas para que homens se beneficiem de privilégios advindos dessa exploração sexista resume a mesma tomada de consciência que nós mesmas vivenciamos. É assustador perceber que suas experiências de desconforto e abuso não são exceções, mas sim regras do jogo. Eu lembro bem da exaustão que senti na adolescência, aprendendo sobre feminismo e adquirindo novas lentes de compreensão da realidade. Entender que a estrutura patriarcal opera ativamente contra você configura uma dor a mais. Ver esse momento representado nas telonas, de forma tão lúdica e sensível, me trouxe uma sensação sem precedentes.

Não obstante, a vida inspirou a arte em diversas cenas. O Ken se apropria da vida da Barbie e ainda assim ela se mostra empática, fazendo mea culpa e sem vislumbrar o arrependimento dele, quanto mais uma reparação efetiva. Inclusive, a amiga humana Gloria, interpretada por America Ferrera, sente a necessidade de dizer aquele “gata, ele não te merece!”, sendo difícil não se identificar com ambas nesta hora.

Em seguida, vemos um discurso acalorado que também traz forte conexão com a realidade, extravasando a insatisfação generalizada diante das expectativas surreais as quais nos submetem. Esta cena, em especial, foi considerada exagerada ou desnecessária por muitos. Seria interessante se os incomodados apontassem quando o próprio machismo, em qualquer uma de suas manifestações, mostrou-se como algo senão exagerado e profundamente desnecessário.

Barbie é passível de críticas, mas curiosamente a maior parte delas apenas reforça o argumento do filme. Sua recepção machista se deu por conta do desprezo a símbolos, alegorias e iconografias femininas — vistas como menores, nichadas e, por que não, irritantes. Afinal, o padrão universal do imaginário coletivo é branco, masculino e heteronormativo. As outras experiências são apenas outras e querer trazê-las para o centro das atenções incomoda. O backlash negativo se escancara com marmanjos ridicularizando o longa e declarando aos quatro ventos que sequer assistiriam a “propaganda anti-homem”; sem falar em grupos religiosos demonizando seu conteúdo, considerado subversivo.

Confesso que me chama muita atenção como quem não se conecta imediatamente com a proposta do longa nem ao menos se dispõe a compreender suas camadas de significado. Até o mais progressista dos feministos riu das piadocas e curtiu a música do Ken, mas se entediou quando a mensagem roubou a cena — enquanto a mulher na cadeira ao lado se debulhava em lágrimas. Esta desimportância significa uma sincera perda coletiva porque este filme, no fim das contas, é sobre humanidade. Humanidade esta que independe de gênero ou qualquer outro marcador social.

A sequência final ao som da voz suave de Billie Eilish ilustra o momento em que a protagonista entende o permanente estado vulnerável que nós, seres humanos, enfrentamos todos os dias por sermos feitos de carne, osso e emoção. O percurso da Barbie se resume em sair de um estado passivo de perfeita ilusão para abraçar a condição humana com coragem e, sobretudo, consciência.

Em quantos filmes aclamados já vimos esta mesma jornada do herói? Depois de enfrentar mil e um dilemas, surge a epifania lógica do c’est la vie, errare humanum est, carpe diem e tantos outros clichês mundanos? Assim, o incômodo coletivo desproporcional em relação à Barbie se deve ao fato de que o grande problema desta narrativa, em detrimento de tantas outras, é que a experiência universal veio coberta de fru-fru. E, cruzes, quem liga para mimimi de mulherzinha?

Infelizmente, pode-se dizer que o exercício da empatia faz parte da socialização feminina e, por isso, os homens perdem sensibilidade. Um exemplo desta dinâmica triste também está no filme: enquanto Barbie engaja em uma jornada profunda de autoconhecimento apesar de tudo e de todos, Ken precisa de longas investidas violentas e cruéis só para colocar o pé em sua própria subjetividade. Ainda assim, passando por cima de todo mal que ele causou, a loira o ajuda a processar sua necessidade de autoafirmação sem ouvir nem desculpas, tampouco agradecimento. Maior paralelo com a vida real não há.

Quantas mulheres nutrem sua evolução pessoal enquanto ajudam algum homem a meramente engatinhar em sua maturidade emocional? A mãe, a namorada, a irmã, a amiga. O que seria dos homens sem o cuidado e o colo delas? Este fardo emocional feminino se perde em meio à imagem de sexo frágil, uma vez que os homens simplesmente não se acolhem. Ouvir que este filme se coloca contra o gênero masculino parece absurdo.

A mensagem explícita com a jornada do Ken nada mais é do que um conselho para que ele pare de basear sua identidade na tentativa de impressionar ou dominar alguém e entenda o alerta sobre o nível de pateticismo da sua própria masculinidade tóxica. Leitor, faça como o Ken: melhore.

Gata garota que curtiu refletir sobre sua condição no patriarcado, busque conhecimento para além desse produto de cultura de massa. Lembre-se: você é tudo, ele é só o Ken.

Obs: Este texto representa a visão de uma mulher branca cis heterossexual, refere-se a estereótipos de gênero com intenção de criticá-los e com certeza não implica em uma reflexão universalizante.

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Carolina Pinheiro
DOSE
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Internacionalista, mestre em Ciência Política, escritora e sonhadora profissional.