Anticoncepcionais São Perigosos?

A internet está cheia de relatos trágicos sobre o suposto perigo dos anticoncepcionais, mas a verdade possui muito mais nuances

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
5 min readNov 22, 2020

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Não muito tempo atrás, me deparei na internet com uma discussão sobre o suposto perigo dos anticoncepcionais, e tenho, desde então, postergado a data em que eu falaria sobre esse tema. Entretanto, tanto o debate quanto meu entusiasmo por ele são bem antigos.

Em 2017, escrevi um artigo analisando como o desenvolvimento de anticoncepcionais mudou a história. Nos anos 1950, quando chegou ao mercado o primeiro medicamento contraceptivo, o movimento feminista aplaudiu a descoberta, enquanto setores mais conservadores da sociedade relutaram em endossá-la.

Hoje em dia, todavia, as críticas de feministas a esses medicamentos parecem cada dia mais incisivas. E já deixo claro que acho justo que critiquem-nos, mas fico frustrada com o pouco embasamento das reclamações. Do fundo do meu coração: não consigo entender quais mulheres são beneficiadas quando aparecem ativistas alegando que anticoncepcional é um veneno. Neste texto, gostaria de conversar um pouco com defensoras e defensores dessa visão.

Antes de mais nada: qualquer medicamento possui riscos e benefícios

Como em todas as áreas da vida, na medicina não há soluções, apenas trocas. Médicos precisam dialogar com franqueza com seus pacientes, para permitir que decisões bem informadas sejam tomadas.

O remédio mais vendido do Brasil é o Dorflex, e basta ler a bula para ter pesadelos à noite. Em casos raros, a dipirona, seu princípio ativo, é capaz de causar agranulocitose, uma doença grave, caracterizada pela queda drástica na quantidade de leucócitos granulosos (células do sistema imune) no sangue.

Falo disso para mostrar como estamos constantemente expostos a riscos todas as vezes em que precisamos de remédios. Muito se fala, por exemplo, de como anticoncepcionais aumentam o risco de tromboses. E esse é um risco real e importante! Para mulheres saudáveis, jovens, não-fumantes, e sem histórico familiar de doenças vasculares, esse risco chega a ínfimos 0,03%. Entretanto, algumas mulheres (como aquelas mais velhas que 35 anos, obesas, fumantes, entre outras) podem ter riscos maiores, e devem ser orientadas a evitar anticoncepcionais.

Mas por que as mulheres devem se submeter a esses riscos? Por que os homens não podem usar camisinha para poupá-las?

Para prevenir DSTs, homens deveriam sempre usar camisinha, mas isso, por vários motivos, não diminui a importância de anticoncepcionais. Para começar, esses medicamentos são úteis não só para mulheres que queiram evitar a gravidez. Pacientes de síndrome do ovário policístico, por exemplo, são primariamente tratadas com eles.

Além disso, a camisinha sozinha possui uma taxa de falha considerável. Segundo o CDC, para uso típico (ou seja, considerando que, no dia a dia, acontecem certos erros, como camisinhas guardadas em lugares inapropriados, ou remédios tomados em horários incorretos), 9% das usuárias de pílulas anticoncepcionais têm uma gravidez indesejada. Para usuárias de camisinha, esse número é de 18%. Apenas metade da eficácia da pílula!

Mas isso não diminui a importância de bons médicos e direitos reprodutivos

De fato, não se pode menosprezar que nem todas as mulheres têm acesso a bons médicos, que lhes deem um aconselhamento apropriado no assunto de planejamento familiar. E isso não é uma questão de dinheiro: tenho amigas que, mesmo com plano de saúde, receberam más recomendações de seus médicos. Conheço uma cujo médico receitou um anticoncepcional de alta dosagem, mesmo que ela buscasse apenas contracepção, e não correção de problemas hormonais. O resultado foi que ela sofreu com efeitos colaterais que poderiam ter sido evitados: ganho de peso e piora da pele. E o médico sequer avisara que isso poderia acontecer!

Uma anedota não é suficiente para acusar um problema sistêmico na medicina, porém é suficiente para indicar que nem toda mulher recebe a informação necessária para uma boa decisão sobre planejamento familiar. Se procurarmos, é certo que poderemos encontrar mulheres em grupos de risco para doenças vasculares que receberam inapropriadamente uma receita de anticoncepcional. O problema nesses casos, é claro, não está nos medicamentos, mas sim em maus médicos.

Além disso, aqui no Brasil, são vergonhosas as restrições que mulheres enfrentam para ter acesso a outros meios de contracepção. Vários médicos, por exemplo, se recusam a oferecer DIUs (uma alternativa segura para aquelas que não querem ou não podem utilizar hormônios) a mulheres que nunca tiveram filhos (nulíparas), por mais que as evidências mais recentes apontem que essa é sim uma opção viável.

Ademais, há aqueles que se recusam a fazer laqueaduras mesmo em mulheres que possuem respaldo legal para solicitar o procedimento. E não é como se a lei fosse muito mais gentil com as brasileiras: elas só podem realizar a esterilização permanente por vontade própria caso possuam 25 anos ou 2 filhos vivos. Precisam, além disso, aguardar 60 dias entre o pedido e o ato cirúrgico (para caso de arrependimento), e o procedimento precisa ser autorizado por seu cônjuge. Sim, você leu certo! Não satisfeito em tutelar sobre o corpo de mulheres adultas, o estado brasileiro ainda exige que elas se submetam à tutela adicional de seus maridos.

Por fim, numa nota mais polêmica, o Brasil está entre os países com lei mais restritiva sobre o aborto. Pessoalmente, sou favorável à legalização do procedimento, e o professor Roderick Long é capaz de argumentar melhor que eu sobre isso, mas essa é uma afirmativa que faço só para não ficar “em cima do muro”. Minha motivação para mencionar aqui a legislação brasileira sobre o aborto é apenas evidenciar, novamente, que há pautas negligenciadas relacionadas aos direitos reprodutivos em terras tupininquins. Dar atenção a tais pautas me parece mais relevante que demonizar medicamentos que enormemente beneficiaram a liberdade feminina.

Em suma: esse debate merece mais seriedade

Não nego aqui a relevância de trazer riscos de anticoncepcionais à luz, mas esse é um debate complexo, que merece mais que frases de ordem pobres de significado. Quem é que sai ganhando se afirmarmos que anticoncepcional é um veneno? Num país em que o acesso tanto à saúde quanto à educação é precário, qual a utilidade de fazer com que mulheres temam à maior garantia que têm contra uma gravidez indesejada (que, diga-se de passagem, não poderá ser legalmente interrompida)?

Desejo o bem das mulheres tanto quanto qualquer ser humano decente, e acredito que há maneiras melhores de beneficiá-las. Educar sobre riscos e benefícios de anticoncepcionais é ótimo! As pessoas precisam entender as vantagens de suas escolhas, mas privá-las do conhecimento sobre as desvantagens é infantilizador e, eu alegaria, perigoso.

Também é ótimo pressionar a indústria farmacêutica pelo desenvolvimento de novas opções contraceptivas — afinal de contas, ela precisa responder às nossas demandas para ter lucros — , e absolutamente necessário exigir do governo e dos médicos políticas mais liberais de acesso ao planejamento familiar.

Só vale lembrar que, quando gastamos tempo e energia demonizando um medicamento, estamos perdendo recursos que poderíamos investir em medidas como as que citei acima, que trariam um benefício muito maior às mulheres que se pretende proteger.

Obrigada por ler esse texto! O que você achou? Você sabia sobre a legislação brasileira no assunto de direitos reprodutivos? E você concorda ou discorda das reclamações que são feitas sobre anticoncepcionais? Me conta aqui nos comentários!

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