Em Defesa dos Números

A matemática aterroriza estudantes de todas as idades, mas vale a pena abrir os olhos para a beleza que ela esconde

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
4 min readDec 6, 2020

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Publiquei este texto originalmente no jornal do meu colégio de Ensino Médio, em julho de 2018. Algumas pequenas revisões foram feitas, mas o estilo levemente imaturo da Amanda de 17 anos foi mantido intacto.

Um dia desses, li um texto que usava o termo innumeracy, análogo ao illiteracy. Se illiteracy é analfabetismo, innumeracy seria, como falava o texto, um anaritmetismo, talvez. Quero falar aqui um pouco desse anaritmetismo, mas, antes de qualquer coisa, preciso deixar bem claro do que não quero falar: não quero dizer que as ciências humanas têm menos valor que as exatas, não quero dizer que os professores de matemática são ruins e, sobretudo, não quero, de maneira alguma, dizer que quem não é bom em matemática é inferior de alguma forma. O que venho criticar é um preconceito que virou moda entre estudantes: o ódio à matemática.

Uns anos atrás, fez sucesso o meme do “não sei, sou de humanas”. Se ele continua ou não na moda, aí sou eu que não sei. Fora o problema de muita gente repetindo a frase como se tivesse orgulho da própria ignorância, creio que o problema é um pouco maior. Afinal, ignorância todos nós temos, e nunca vou me esquecer da afirmação que o economista David Friedman fez quando tive a oportunidade de assistir uma de suas palestras: somos voluntariamente ignorantes nos mais diversos tópicos, e é por isso que fazemos trocas.

Um engenheiro civil, por exemplo, seria incapaz de realizar sua própria cirurgia caso tivesse uma pedra nos rins, do mesmo modo que seu cirurgião não poderia projetar sua casa sem colocar em risco a vida de seus ocupantes. O grande problema é estar diante da oportunidade de aprender algo extremamente útil e factível e dizer, com a soberba de quem se considera detentor de conhecimento suficiente, que obviamente seria incapaz de compreender os números que nos cercam. E não sejamos ingênuos: nunca nosso conhecimento será suficiente, e recusar uma oportunidade de aprendizado é, no mínimo, um tiro no pé.

Enfim, chegamos ao ponto central de todo esse texto: por que foi justamente a matemática transformada no pavor dos jovens? É compreensível, e dá para citar várias causas: é uma disciplina difícil, nem todos os professores são bons, encontrar uma boa metodologia de ensino é, por si só, um desafio, o sistema educacional coloca mais ênfase em aprender a fazer exercícios para o vestibular do que em aprender a empregar essa matemática, muito do que se aprende parece não ter utilidade prática… Por aí vai.

Muita gente age como se os números fossem monstrinhos, e, na pior das hipóteses, afirmam a todo instante sua suposta inutilidade. “Nunca usei Báskara para nada na minha vida” é uma frase clássica, mas duvido que alguém já tenha dito por aí “Nunca usei Senhor dos Anéis para nada na minha vida”. Nem tudo que é importante nessa vida precisa de uma função clara. A literatura, como citei, é, essencialmente, inútil, bem como a fórmula de Báskara. Por outro lado, quando lemos obras de fantasia para passar o tempo livre, ou quando usamos a fórmula de Báskara para calcular quanto uma empresa precisa produzir para obter seu lucro máximo, tudo faz sentido e ganha outra cor. Todavia, para que os números sejam encarados com a mesma admiração de um romance, é preciso que toda a compreensão que se tem sobre a matemática mude.

Essencialmente, a matemática é uma linguagem, a linguagem segundo a qual o universo se comunica conosco. Como ignorar a poesia dessa ideia? Não é necessário ser um gênio da matemática para ver o quanto há beleza nisso. Na realidade, não é preciso sequer ser um aluno além do mediano. Se o universo é infinitamente complexo, por que sua linguagem haveria de ser simples? Pelo contrário: é desafiadora, nos leva a empregar os preceitos mais básicos da lógica e, mesmo com horas de esforço, pode persistir um obstáculo tremendo. Se, por um lado, sofrer nas mãos dos números pode indicar que a vocação do indivíduo é outra, e que, para ele, vale mais a pena investir em um engenheiro do que construir sua própria casa, nunca deveríamos nos esquecer de que o sofrimento é parte integrante da vida, e que não precisamos fugir dele como se nada pudesse ser extraído das frustrações.

Não estou advogando por um “masoquismo numérico”, mas por um esforço para que um quadro cheio de equações lembre mais uma poesia que uma coleção de caracteres sem nexo. Claro, o ensino tem muito a melhorar para que esse trabalho possa ser facilitado, porém há uma ou outra coisa que podemos fazer, enquanto estudantes, para que o pesadelo dos números possa se tornar, no mínimo, um sonho bizarro. Buscar compreender o que diz uma fórmula, em vez de simplesmente memorizá-la, prestar atenção nas demonstrações desses teoremas, quando elas são feitas, dar uma chance ao poder de sedução do ciclo trigonométrico e do triângulo de Pascal… Assim, quem sabe, uma hora possamos todos perceber que ferramenta linda temos diante de nossos olhos quando vemos uma equação.

Obrigada por ler este texto! Fiz algo diferente ao trazer algo que já estava escrito há alguns anos, então mais do que nunca eu preciso do seu feedback. O que achou? Gostou do texto do fundo da gaveta? O que você acha de eu trazer mais deles no futuro? Deixe seu comentário.

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