Está certo lacrar só para lucrar?

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
Published in
8 min readJun 21, 2020

Embora aqui no Brasil eu nunca tenha visto a campanha decolar tanto, junho é mundialmente o Mês do Orgulho LGBT. E o que as companhias multinacionais fazem durante esse período? Bem, elas ficam orgulhosas.

Isso, é claro, pode ser visto sob várias óticas. A interpretação imediata, quase instintiva, deve ser positiva: veja só, todas essas empresas apoiando a pauta LGBT! Estamos certamente caminhando para um mundo mais inclusivo!

Empresas quando chega o Mês do Orgulho LGBT: “Você sabe, eu mesmo sou um pouco homossexual”

Mas a internet, como sempre, não perdoa, e surgem sempre os questionamentos acerca da legitimidade das logomarcas arco-íris: será que essas são empresas que realmente apoiam a causa LGBT ou será que elas querem apenas capitalizar em cima dessa pauta? É certo aceitar que o Orgulho LGBT seja usado como estratégia de marketing? Não deveríamos exigir que as empresas que usam o arco-íris para vender façam algo mais efetivo pela luta LGBT? Deveríamos permitir que essa luta seja usada por essas empresas, ou será que é melhor boicotá-las?

Busco aqui argumentar o seguinte: é muito provável que essas empresas não deem a mínima para os dilemas da população LGBT, mas esse é um problema muito menor do que usuários enraivecidos de redes sociais o fazem parecer. Serei um pouco mais abrasiva em minha afirmação: sim, o arco-íris é somente uma estratégia de marketing, essas empresas querem capitalizar em cima da pauta LGBT. Entretanto, o impacto disso é, na pior das hipóteses, neutro, e eu ousaria afirmar que é positivo.

Para entender sobre a premissa de que o emprego da pauta LGBT em estratégias de marketing seria algo negativo, vou definir aqui os conceitos de pink money (dinheiro rosa) e pink capitalism (capitalismo rosa). O termo pink money descreve o poder de compra da comunidade LGBT, ou seja, o que indivíduos dessa comunidade são capazes de consumir. Por que isso é importante? Porque, evidentemente, maior poder de compra advém de maior inclusão social. Caso a discriminação numa sociedade faça com que determinados grupos tenham maiores dificuldades em conseguir empregos, promoções, e aumentos salariais, esse grupo terá um poder de compra baixo. Da mesma forma, é pouco provável que um grupo discriminado continue à margem da sociedade após conquistar ascensão financeira — vale mesmo a pena olhar torto para gays, negros, judeus, ou qualquer outro grupo minoritário que frequente o seu restaurante se eles forem seus principais clientes? Se, portanto, o dinheiro rosa tiver ampla circulação na sociedade, isso quer dizer que LGBTs estão sendo mais aceitos, e que quem continuar a rejeitá-los estará perdendo uma grande fatia do mercado consumidor.

Daí surge o pink capitalism, que é justamente a tendência das empresas de se aproveitarem da fatia LGBT do mercado. No momento em que as companhias percebem que podem ganhar muito dinheiro caso aceitem que ele esteja cor-de-rosa, elas transformarão a pauta LGBT em uma estratégia de marketing, ficarão orgulhosas durante o Mês do Orgulho, e até criarão segmentos de mercado dedicados inteiramente à população LGBT — quem nunca viu uma boate gay, por exemplo?

O emprego do conceito de pink capitalism, todavia, costuma surgir sob uma ótica crítica. Há, por exemplo, a queixa — muito válida, por sinal — de que pouco adianta que Paradas LGBT movimentem milhões ao redor do globo enquanto ainda houver restrições à união de casais de mesmo gênero ou à adoção de crianças por eles. Afinal, a aceitação não pode ser vazia: ela precisa ser traduzida em melhorias concretas.

Já a outra queixa que surge nesse contexto é justamente o tema central deste texto: a transformação do Orgulho LGBT em um produto, em uma estratégia de vendas. Boa parte dos que questionam a inserção dessa pauta dentro de uma lógica de mercado são contra a própria economia de mercado — ou seja: o problema não é o capitalismo rosa, é o próprio capitalismo.

Não quero me desviar da argumentação para me adentrar em uma discussão acerca de qual o melhor sistema econômico, mas acho justo que o meu leitor saiba qual o meu viés: para mim, o melhor sistema é o livre mercado. Talvez você acredite na necessidade de alguma regulamentação em cima dos mercados, e, se for esse o seu caso, creio que este texto vá te interessar. Se, por outro lado, você não acredita em nenhuma forma de capitalismo, minhas premissas são muito diferentes das suas, e nada do que eu te disser será capaz de mudar sua opinião.

Contudo, não é unânime a visão anticapitalista por parte dos críticos do pink capitalism: vários deles acreditam que a economia deve sim ser baseada em mercados, mas acreditam que não seja ideal — talvez sequer moral — que as empresas se aproveitem da pauta LGBT para vender. Não que essa visão seja um problema — você pode preferir boicotar essas empresas, está dentro do seu direito — porém eu me pergunto… Qual é o grande problema na transformação do Orgulho em estratégia de marketing? Para mim, isso deve ser visto como um bom sinal.

Você talvez nunca tenha ouvido falar na Janela de Overton, mas certamente tem uma compreensão intuitiva do que ela significa. Também conhecida como Janela do Discurso, ela descreve o espectro dos discursos aceitáveis dentro da política. Pense em qualquer dicotomia dentro da política: conservadores X progressistas, esquerda X direita, liberais X autoritários… Percebe que as opiniões aceitas costumam se encontrar mais próximas do centro desses espectros? E, é claro, o que é ou não aceitável muda com os anos: ninguém ousaria defender hoje a escravidão (ainda bem!), coisa que era comum no século XIX. Em compensação, o próprio casamento gay seria impensável nas discussões políticas daquela época. E embora o senso do que deve ou não ser publicamente defendido seja necessário a todos nós, ninguém precisa tê-lo mais aguçado do que vendedores.

Marketing nada mais é que vendas, e vendas nada mais são que persuasão. Para sermos capazes de persuadir alguém, precisamos, antes de mais nada, conhecer esse alguém, e é certamente mais fácil conhecer a uma pessoa que conhecer a toda a sociedade. Perceba, no entanto, que é justamente isso que fazem os publicitários de grandes empresas: o Google, uma das empresas que frequentemente ficam orgulhosas em Junho, tem mais de 1 bilhão de usuários ativos. Para quem traça estratégias de marketing dessas empresas, é extremamente importante saber o que é aceitável aos olhos de, idealmente, toda a sociedade.

O que isso significa especificamente para o Orgulho LGBT? Ora, se as grandes empresas, cujo marketing precisa ser bem visto por milhões de pessoas, resolvem transformar suas logomarcas em arcos-íris por um mês, isso significa duas coisas: a primeira, mais evidente, é que o dinheiro rosa é relevante a elas. A segunda, mais sutil, é ainda mais importante do ponto de vista da luta LGBT: empresas orgulhosas demonstram que a pauta LGBT está dentro da Janela de Overton. Não é tão fácil determinar se o empoderamento econômico da comunidade LGBT está aumentando sua aceitação social ou se é o aumento da aceitação social que está causando o empoderamento econômico, mas o fato é que esses dois fenômenos estão acontecendo ao mesmo tempo. Companhias orgulhosas indicam que o pink money é suficientemente relevante para uma estratégia de vendas, e que LGBTs estão se tornando tão bem aceitos que a parcela de clientes conservadores que podem ser afugentados por uma bandeira arco-íris é pequena (em números ou em poder de consumo) o bastante para justificar uma campanha orgulhosa. Perfeito! Estamos encerrados, certo?

E todos os gays foram felizes para sempre!

Para variar, errado.

Eu mostrei que essas campanhas indicam que a comunidade LGBT está se empoderando, mas não respondi a um questionamento importante: é certo que as companhias usem esse empoderamento para seus próprios ganhos? Vejamos, estamos em uma economia de mercado, e se for para ser assim, que essa economia inclua pessoas LGBT. Creio que não haja muita discussão quanto a isso, mas ainda assim… Essas companhias não estão sendo meio egoístas? Não estão se aproveitando dos resultados da luta LGBT? O lucro que essa luta gerou não deveria ser revertido para as pessoas LGBT?

Todos esses questionamentos são extremamente válidos! Pessoalmente, adoraria ver os lucros oriundos da luta LGBT indo para pessoas LGBT, e eu certamente participaria de um boicote contra uma empresa que ativamente trabalhasse contra os direitos da comunidade. Ver histórias como a de Bruno Sodré nunca deixa de emocionar, e isso nos inspira a buscar um mundo em que pessoas LGBT obtenham cada vez mais sucesso em suas carreiras. A melhor forma de promover o sucesso dessas pessoas, é claro, é “colocar seu dinheiro onde está sua boca”: consumindo o que elas produzem. Seu vizinho gay abriu uma padaria? Nada te impede de comprar lá o seu pão. Uma conhecida trans está começando uma loja de roupas? Ao menos uma olhada na vitrine você deveria dar. Desta maneira, você estará ativamente promovendo o bem da comunidade LGBT.

Mas perceba que aí está a chave para compreender que as empresas orgulhosas não estão cometendo um pecado: certo, elas não estão ativamente ajudando nenhuma pessoa queer, porém tampouco estão ativamente prejudicando-nas! Ora, essas companhias estão agindo egoisticamente sem causar nenhum bem e nenhum mal — ao menos não diretamente.

Espera aí, Amanda! Você acabou de admitir que elas são egoístas! Viu, eu disse que elas são aproveitadoras!

Sim, eu admiti que são companhias egoístas. E você, é altruísta por um acaso? Certamente você age em benefício alheio várias vezes ao longo do seu dia: você dá carinho a seus amigos e a sua família, deseja um bom dia a todos que encontra, dedica parte de seu dinheiro a caridade… Você é uma pessoa muito boa! Mas eu não chegaria a dizer que é altruísta na hora de realizar trocas. Independentemente da profissão, todos tentamos agir de modo a maximizar nosso bem estar com nosso trabalho. Cobramos por nossos serviços o valor mais alto que os consumidores estão dispostos a pagar (ainda que alguns abram exceções para clientes menos favorecidos ou para pessoas íntimas), pagamos o mínimo necessário para obter produtos de boa qualidade… Somos todos egoístas na hora de realizar trocas, e que mal há nisso? Não há aproveitamento se todas as partes envolvidas na troca estão de acordo com os valores sendo cobrados.

Evidentemente, não é preciso ser egoísta a cada instante de sua vida — eu espero que você trate bem aos outros, e que, se possível, procure às vezes fazer do mundo um lugar melhor sem esperar algo em troca —, e dizer que “Somos todos egoístas” não exime ninguém da culpa por ações antiéticas. Fato é que não há dano direto à comunidade LGBT quando empresas transformam suas logomarcas em um arco-íris. Você, é claro, não é obrigado(a) a consumir os produtos das companhias orgulhosas, no entanto é bom se perguntar: por que o desconforto? Essas companhias estão sendo tão egoístas quanto qualquer outro agente dentro de uma economia de mercado. E, como eu disse lá em cima, você não precisa ser a favor de um mercado, mas qual é o grande problema de agir de forma egoísta se ninguém estiver sendo machucado diretamente? Se for para avaliar também o impacto indireto, fica ainda mais claro, ao menos para mim, que uma logomarca arco-íris durante junho faz bem para a comunidade: não vai mudar o mundo, porém vai ajudar a disseminar a mensagem de que este mesmo mundo está cada dia menos conivente com velhos preconceitos.

Obrigada por ler este texto! Se você gostou, deixe aqui embaixo seus aplauso (de 1 a 50), e me acompanhe nas redes sociais para não perder nenhum texto :)

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