O Dia em Que Dancei Como Se Não Houvesse… Autocrítica?

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
Published in
8 min readFeb 9, 2020
Dá para fazer um jogo dos sete erros com a combinação de roupas que escolhi para essa foto

Hoje eu quero te contar uma história, e eu espero que ela te inspire. Como toda crônica, essa história começa com uma observação do cotidiano. Na foto ao lado, estou sorrindo um sorriso genuíno. Quem me conhece sabe que não sou a pessoa mais sorridente do mundo. Na foto ao lado, eu estava sentindo aquele tipo de felicidade que deixa a gente sereno, em paz. Inicialmente, não quis postá-la. Consigo enumerar todas as trinta mil falhas que ela tem, não estou exatamente bonita nela — estou fofa, quem sabe —, porém eu acho que ela transmitiu com uma perfeição surreal tudo o que eu estava sentindo. Eu me senti bem comigo mesma, imperfeita do jeito que sou. De vez em quando, acho importante lembrar disso. Se tem um pensamento que eu odeio é o de que tenho falhas. Provavelmente, vou estar sempre buscando ser a melhor versão de mim, mas talvez eu não precise detestar a versão atual.

Certo, e quando essa foto foi tirada? O que está acontecendo nela? Eu estava saindo do meu quarto, logo antes de eu ir para uma nova escola de ballet. Um resumo da história até agora: eu comecei a dançar ballet com 16 — quase 17— anos, o que, para os padrões do ballet, é muito tarde. Mesmo assim, me apaixonei por tudo: pela dança, pela arte, pela capacidade física exigida, pelas roupas, pelas sapatilhas, pelos compositores dos clássicos… Como, porém, meu maior objetivo é a medicina, um curso em tempo integral, o meu critério para escolher uma escola não pode ser tão técnico quanto eu gostaria: é preciso levar em conta os horários disponíveis e a localização. Por isso, comecei o semestre conhecendo as minhas opções, pois a escola onde eu dançava ano passado, apesar de excelente, alterou sua grade de horários e se tornou inviável.

Quarta feira passada, então, aproveitei que o mês de fevereiro — e, com ele, o ano letivo — estava prestes a começar e enviei emails para as escolas que pareciam ter uma boa grade de horários, pedindo para fazer uma aula experimental. Uma delas me respondeu com uma mensagem diferente do que eu esperava: me perguntaram se eu gostaria de, no dia seguinte, participar de uma audição para seu corpo de baile. Logo informei da minha inexperiência, e perguntei se isso seria um problema. A resposta foi negativa. Naquele momento, enviei uma resposta impulsiva: sim, eu adoraria fazer a audição! Estou, afinal, de férias, e não tenho nada a perder.

Alguns minutos depois que tudo havia sido combinado, me pus a pensar um pouco mais sobre a minha decisão. Teria sido mesmo uma boa ideia? Afinal de contas, eu não sou uma boa bailarina. Falar isso não é fruto do meu hábito de autodepreciação: é a verdade. Ora, bailarinas da minha idade estão preparadas para ingressar em companhias profissionais, eu estou lutando para me equilibrar em sapatilhas de ponta sem o auxílio da barra. Bailarinas na pré adolescência conseguem fazer piruetas, eu me esforço para conseguir rodopiar pela sala. E, no fim, será que isso é um problema? O ballet é meu hobby, não minha carreira. Se eu pudesse, acordaria amanhã capaz de dançar como Odete/Odile em O Lago dos Cisnes, mas sei que não posso. Terei que me esforçar por anos para chegar a esse ponto, e pode ser que nunca chegue. E daí? Não estou me divertindo, no fim das contas?

Foi o que argumentei, pois, quando minha mãe e minha irmã questionaram se era mesmo apropriado que eu fizesse parte de uma audição. A professora com quem havia conversado pelo email me dissera que seria somente uma aula simples — spoiler: não foi —, então o que havia a ser perdido? Depois de um semestre inteiro parada (um salve para a apendicite), tudo o que eu mais queria era poder dançar novamente. Se minhas habilidades fossem suficientes, eu poderia ingressar em um corpo de baile! Certo, eu não poderia ser a Odete, mas eu poderia ser um dos cisnes que dançam em grupo. Se não fossem, eu teria retornado à dança e conhecido o trabalho de mais uma escola, o que permitiria colocá-la no meu rol de opções.

Chegou, então, o famigerado dia. Tirei do armário minha bolsa, meu collant, e minhas meias. Na frente do espelho, me vesti, e não resisti a colocar em meus pés as sapatilhas de pano. Escolhi um calçado um pouco mais largo, assim poderia colocá-lo por cima delas enquanto andasse na rua. Por fim, peguei a saia que estou usando na foto: ela é confortável, já havia sido usada recentemente (ainda precisaria ser vestida por algumas horas para precisar ser lavada), e é mais bailarinística que um short jeans, que seria minha segunda opção. Meus pais e minha irmã estranharam que eu aparecesse em trajes de dança na mesa de almoço, mas contei a história, quiçá com brilho nos olhos. Mal podia esperar: havia sido pedido que eu chegasse com 15 minutos de antecedência, mas, quando cheguei, ainda faltavam ao menos 45. Foi bom, pois tive tempo para me alongar. Minha flexibilidade, é claro, estava pior que em agosto, quando parei com a dança, mas nada tão trágico — afinal, embora eu não estivesse mais me alongando consistentemente, não havia perdido totalmente o hábito. Lutei um pouco para conseguir sequer encostar meu torso em meus joelhos, enquanto a moça ao meu lado fazia uma abertura completa sem aparentar esforço.

A partir daí, comecei a lembrar de todas as emoções negativas que o ballet também já me foi capaz de gerar. Logo de início, a sensação de incapacidade: adoro o quanto a dança exige do meu corpo, e a vejo, nos dias bons, como um desafio. Nos dias ruins, vejo como um atestado da minha incompetência. Ver a moça ao meu lado se alongando me lembraria, nos dias bons, do quanto o ser humano é capaz de transcender seus limites quando se esforça por um objetivo. Nos dias ruins, faria eu me questionar por que não havia usado as férias prolongadas para me alongar com mais frequência (“Sua inútil!” — diria uma voz na minha cabeça). Naquele momento, fiz, inconscientemente, a decisão se aquele era ou não um bom dia. E era um dia ótimo.

Chegou a hora da aula propriamente dita, e lá estava eu novamente em uma sala de dança, com todas as suas inconfundíveis características: as barras, os espelhos, o linóleo, as bailarinas. E, não vou mentir: olhar no espelho durante as aulas de ballet é sempre difícil para mim. Estou sempre com minha franja e meu cabelo bem presos, de modo que todas as imperfeições do meu rosto ficam escancaradas. Danço de collant, meias, e sapatilha, de modo que o contorno de cada imperfeição do meu corpo fica visível. Não sei se é excesso de autocrítica ou simplesmente uma quantidade de insegurança inerente à condição humana, mas isso tudo já me deixa desconfortável antes mesmo de a aula começar. Quando, então, ela começou, a situação ficou ainda mais difícil. Ainda que eu esteja frequentando a academia, força bruta não é suficiente para algo que é também uma forma de arte. Minha técnica estava (e ainda está) absurdamente enferrujada. Ritmo? Delicadeza? Coordenação? Palavras sem sentido. Eu não estava dançando nada bem, e o nível da aula era muito acima do meu. E, mesmo assim, eu saí de lá feliz.

Talvez por estar morrendo de saudades do ballet, talvez por querer muito contar uma história interessante para alguém, talvez por um dos exercícios ter sido acompanhado por uma música de Tchaikovsky, ou, numa hipótese mais arrojada, talvez por eu estar finalmente aprendendo a aceitar quem eu sou, eu saí feliz com meus rodopios malfeitos. Em alguns momentos da aula, eu sequer sabia o que estava fazendo. Não tinha ideia de como completar o passo pedido. Ainda assim, fiquei contente por estar lá.

Ultimamente, tenho refletido mais sobre os meus padrões de autocobrança. Se quero transformar esse texto em uma reflexão motivacional sobre como você deveria aceitar suas falhas? Não, até porque não tenho moral para falar sobre isso (hoje mesmo eu já compartilhei o gato da baixa autoestima). Todavia, se eu pretendo fazer desse texto uma crônica minimamente aproveitável, eu preciso terminar com uma reflexão útil para outras pessoas além de mim. E o que eu acho que consegui absorver da experiência de me sentir bem com minhas falhas é que é possível fazê-lo, e não necessariamente isso significará que eu aceitarei conviver com elas. A meta, no fim das contas, continua sendo, um dia, dançar alguma das minhas peças favoritas, o que, se for sequer possível, exigirá muita dedicação. O que eu senti, foi algo como:

Tudo bem, eu não estou dançando bem, essa é uma aula avançada, e eu estou sem prática. Vou continuar tentando, ao menos manter essa perna esticada eu certamente consigo. E vai que estão aceitando bailarinas um pouco mais iniciantes? Cara, hoje eu vou dançar como se não houvesse amanhã. E se não conseguir… Tudo bem, eu tenho a vida inteira pela frente.

Não sei se esses são pensamentos aplicáveis para metas das quais dependo mais (por exemplo, a meta de tirar notas melhores nesse semestre), não sei se estou sendo muito condescendente comigo mesma, tem muita coisa que eu não sei. Mas eu olho para o jeito como eu estava sorrindo para o espelho antes de ir para a aula e lembro que quero me sentir assim mais vezes. Tenho vários amigos que sei que não gostam muito de quem são. Tenho vários outros que se cobram muito e ficam paralisados, outros que se cobram muito e atingem níveis de sucesso que eu mal consigo conceber. De qualquer forma, eu sou jovem, ainda estou na fase de descobrir o que funciona ou não para minha vida. Eu quero muito ter mais momentos como esse, e eu quero que as pessoas ao meu redor tenham momentos felizes assim. No fim das contas, acho que descobri que o mundo não acabou por eu ter permitido a mim mesma um pouco de alegria. Ao menos não dessa vez.

Obrigada por ler esse texto! Espero muito que tenha gostado, e, se gostou, dê seu “aplauso” (de 1 a 50) aqui embaixo, e clique aqui para me encontrar nas redes sociais e não perder os próximos posts. Compartilhe nos comentários o que achou do texto! Já passou por uma situação desse tipo? Como funciona a sua autocrítica? Como você faz para lidar com ela de forma saudável?

Se você não ficar emocionado com isso, você não tem coração.

Por fim, já que o tema de hoje foi ballet, deixei ao lado um vídeo do Adágio da Rosa, do ballet A Bela Adormecida. É dele que sai a música que mencionei no texto e, francamente, tudo é deslumbrante nesse vídeo. Até semana que vem :)

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