O que a história de Alan Turing nos ensina sobre tolerância?

A morte precoce do pai da ciência da computação, por suicídio, tem muito a revelar sobre nossas falhas enquanto sociedade

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
6 min readJun 28, 2020

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Se estivesse vivo, Alan Turing, o pai da ciência de computação, teria completado essa semana, no dia 23 de junho, 108 anos de vida — mais tempo do que a maioria de nós espera viver. Todavia, sua morte foi, na realidade, extremamente precoce: aos 41 anos, por culpa de um provável suicídio, Turing foi encontrado morto por sua senhoria.

Alan Turing aos 16 anos

Embora pouco conhecida, a história de Alan Turing é uma daquelas que mais deveria ser recontada nos dias de hoje. Britânico, Alan era matemático, e trabalhou no projeto Ultra, que visava decifrar as mensagens criptografadas enviadas pelos nazistas. Daí surge parte do relativo desconhecimento de sua história: nem mesmo seus familiares sabiam do que se tratava o projeto em que ele trabalhava, tamanho o empenho do governo britânico em mantê-lo secreto.

Contudo, segredos à parte, o trabalho de Turing foi essencial para a vitória dos Aliados na Segunda Guerra. Ao decodificarem a comunicação do Eixo, eles puderam estar um passo a frente de seus inimigos, encontrar seus submarinos, e até mesmo prever qual seria a reação alemã durante o Dia D. Turing foi capaz de decifrar as mensagens da máquina Enigma — empregada pelos nazistas para embaralhar as letras digitadas em suas mensagens, de modo que a compreensão da mensagem recebida dependia do acesso a uma chave de encriptação que era trocada mensalmente — por meio de uma técnica eletromecânica chamada bomba, que permitiu que, em 1942, os britânicos conseguissem ler uma mensagem por minuto.

As contribuições de Turing à história, entretanto, não estão restritas aos esforços de guerra. Seu trabalho na matemática serviu como precursor à computação moderna, de onde se extrai a alcunha que ele mais frequentemente recebe: pai da ciência da computação.

É de se imaginar, portanto, que ele tenha sido condecorado em vida pelo governo britânico como um herói de guerra, ainda que com certo atraso (ele participava de um projeto secreto, afinal de contas). E ainda que o reconhecimento não pudesse ser público, que ao menos internamente o governo aplaudisse seus esforços. Porém, havia para isso um pequeno obstáculo, um detalhe na vida de Turing, algo extremamente pessoal, que não deveria competir a governo algum: ele era gay.

Em 1952, Alan Turing foi julgado segundo os conformes da lei por ter admitido um relacionamento de natureza sexual com Arnold Murray. Seu crime? Indecência. Ainda que o romance de Turing fosse vivido entre quatro paredes, sem incomodar a uma alma viva sequer, e ainda que ele fosse um verdadeiro herói para o povo britânico, dura é a lei, mas é a lei. Sendo assim, lhe foi facultada a escolha: ele poderia ser preso ou manter liberdade condicional caso se submetesse a tratamento hormonal para redução de libido — a chamada castração química.

Ele optou por manter sua liberdade, mas o tratamento vinha com sua carga: durante um ano, ele sofreu com um processo de feminização de seu corpo, que o tornou impotente, e chegou a fazê-lo desenvolver seios. Deprimido, no ano de 1954, Alan Turing morreu por suicídio, após ingerir uma maçã contaminada por cianeto.

É absurdo que um homem que realizara atos tão importantes para sua nação tenha sido recebido com uma lei tão invasiva — que só foi revogada em 1967. No Reino Unido, a homossexualidade caracterizou por anos o crime de indecência. Independentemente de visões pessoais sobre a homossexualidade, o que justifica que haja leis proibindo sua existência? Em sua essência, essa lei significou apenas que um indivíduo — por mais que oferecesse contribuições valiosas à sociedade — não poderia buscar sua felicidade ao lado da pessoa amada caso essa pessoa não fosse do gênero que um burocrata considerava decente.

Notem, porém, que não ignoro aqui a existência de visões pessoais, sejam elas dos governantes ou do povo que os colocou no poder. Em 1952, ano da condenação de Turing, não eram raras as pessoas nascidas no século XIX. Mesmo as pessoas relativamente jovens, como o próprio Alan, haviam sido criadas em um ambiente muito mais conservador que o dos dias de hoje — e ainda nos dias de hoje a aceitação de pessoas LGBT não é universal. É evidente que a sociedade britânica dos anos 50 via com péssimos olhos a existência de casais homossexuais, e por mais que vejamos isso com maus olhos hoje em dia, não é tão fácil culpá-los. Certamente, os indivíduos de 2088 julgarão muitas das visões que são corriqueiras hoje em dia. Por isso, acredito que seja muito mais urgente a busca pela tolerância que pela aceitação.

Qual seria a diferença entre esses dois termos? Para as finalidades deste texto, definirei da seguinte forma: a aceitação compreende o total endosso a um certo comportamento, enquanto a tolerância parte do princípio que certos comportamentos, ainda que repugnantes, não devem ser ativamente combatidos.

Acredito profundamente na importância da moral e da virtude, mas não tenho uma bagagem de conhecimentos suficiente para definir exatamente quais as minhas crenças nesse âmbito. Por isso mesmo, não acredito que é minha responsabilidade determinar se Fulano ou Ciclano está agindo da forma mais bela possível. Honestamente, quem seria capaz de determinar com certeza o que é absolutamente desejável para uma sociedade? Quem é iluminado o bastante para escrever uma lei que diga como as pessoas devem se comportar em suas vidas íntimas?

Para que uma sociedade funcione, é evidente que alguns princípios básicos precisam ser estabelecidos: não tire de ninguém a vida, a liberdade, ou a propriedade, é um bom começo. Com isso, permitamos a cada um a busca pela felicidade, o elemento mais subjetivo dessa lista. O que é felicidade, afinal? Cada um terá seu próprio conceito, e, novamente, quem é iluminado o bastante para determinar — com toda certeza — a melhor maneira de ser feliz?

Eis o valor e o significado da tolerância: ninguém é iluminado o bastante para determinar com certeza o comportamento ideal de outros indivíduos. É claro que podemos aconselhar àqueles que amamos, e é justo que procuremos modos de espalhar nossas visões (redes sociais, por exemplo). Mas a lei carrega consigo um peso especial: dura é a lei, mas é a lei. Para assegurar o cumprimento das leis, o estado tem acesso à força policial, às cortes de justiça, e às prisões — poderes que eu e você não temos para assegurar que os outros sigam nossas visões. Que ótimo! Porque eu não confio em você, e você também não deveria confiar em mim.

Quando, em 1885, o Parlamento Inglês determinou que a homossexualidade deveria ser um crime, a decisão foi tomada por homens que confiavam em demasia em seu próprio julgamento. Confiavam tanto que acreditavam que tinham a capacidade e o direito de legislar sobre decisões consensuais tomadas entre dois adultos, decisões que não afetariam o bem estar de nenhum terceiro. É evidente que não poderíamos voltar no tempo e exigir desses homens aceitação — você consegue imaginar a mentalidade deles? Ora, eram homens que sequer acreditavam na capacidade de uma mulher de votar, como esperar que eles fossem acreditar na virtude de um homem amar outro homem, ou na virtude de uma mulher amar outra mulher? Eu, em 2020, reconheço como virtude qualquer forma de amor, mas jamais poderia impor, pela força, esse reconhecimento a ninguém, que dirá a homens do século XIX!

Esses homens, ainda que indiretamente, fizeram com que a história de Alan Turing fosse encerrada em uma tragédia. E, por mais que nos consideremos mais iluminados que eles, o que nos garante que não causaremos tragédias semelhantes ao confiarmos em demasia em nosso julgamento? Enquanto acreditarmos, ainda que implicitamente, em nossa capacidade de tomar decisões para a vida privada de outros indivíduos, é gigantesco o risco de cometermos o mesmo erro. Evitar que isso ocorra depende não de promover a aceitação a uma maior gama de comportamentos (embora você possa fazê-lo), mas de reconhecer a suprema importância da tolerância, e de manter eterna vigilância às leis que criamos: que nenhuma delas diga respeito às decisões que partem de um adulto e que concernem somente à sua vida íntima.

Foi somente em 2013 que Alan Turing recebeu o perdão póstumo ao crime de indecência, acompanhado do anúncio do Lord Chancellor Chris Grayling de que Turing merecia ser lembrado por sua contribuição aos esforços de guerra, e não por sua injusta condenação. Decerto, ele merece a gratidão de todos nós que estamos, neste exato instante, olhando para nossas telas. Em sua curta vida, é incrível o quanto ele pôde colaborar para a construção de um mundo melhor, e é triste pensar em tudo mais que sua genialidade poderia ter oferecido à humanidade se ele tivesse tido mais tempo de usufruir de sua vida — e se tivesse tido a oportunidade de buscar para si a sua própria felicidade.

Obrigada por ler este texto! Não se esqueça de deixar seus aplausos (de 1 a 50) se tiver gostado, e de me seguir nas redes sociais para não perder os próximos textos :)

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