Quem tem medo de “ideologia de gênero”?

O rótulo “ideologia de gênero” é bem popular, mas o que ele significa? E, mais importante: como devemos lidar com essa suposta ideologia?

Amanda de Vasconcellos
O Prontuário
8 min readJun 14, 2020

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Umas semanas atrás, eu estava sem inspiração para postar e pedi no Instagram sugestões de temas para um texto, e recebi “ideologia de gênero” como uma das respostas. Acabei postando uma série de stories, que muita gente elogiou. Resolvi, então, aproveitar que junho é o mês do orgulho LGBT e transformar em texto os meus dois centavos sobre o tema.

Para início de conversa, vamos discutir o termo ideologia de gênero. Uma regra interessante na hora de dar nomes às crenças alheias é verificar se alguém usa o nome que você está dando. Quer um exemplo? Você vê muita gente criticando o neoliberalismo e os neoliberais, mas nenhum dos teóricos criticados se identifica(va) como neoliberal: todos se descrevem como liberais, libertários, ou algo do tipo. Da mesma forma, muito se ouve dizer sobre a tal da ideologia de gênero, porém eu nunca vi ninguém dizer que segue ou estuda essa ideologia. É um termo que é empregado para criticar certas ideias, mas os próprios proponentes delas usam outros nomes para se descrever. E quais nomes seriam esses? Quando vejo falarem sobre ideologia de gênero, normalmente estão falando sobre a teoria queer ou sobre o feminismo radical.

RESPIRA FUNDO, não sai correndo, vou explicar um pouquinho melhor sobre essas duas visões, mas não vou me aprofundar, e muito menos tentar te convencer a aderir a qualquer uma delas. O que é preciso entender de início é que essas são visões antagônicas, ou seja: você pode acreditar em uma delas, mas dificilmente nas duas ao mesmo tempo. Para explicar um pouco sobre isso, trarei de volta a este blog um convidado muito especial, o Tiozão Genérico (que, neste caso, poderia muito bem ter 15 anos… ou 20… ou 30… Eu só trouxe o Tiozão porque é mais fácil brincar com estereótipos que já existem do que criar novos):

Ah, mas agora não tem só homem e mulher! Agora vocês querem que tenha 30 gêneros! Porque agora gênero é construção social, e não existe só homem e mulher! É tudo inventado, né?

Como eu sempre digo: vamos com calma. As pessoas que dizem que gênero é construção social quase nunca são as mesmas que dizem que existem 30 gêneros. Na realidade, esses dois grupos brigam muito: tanto na discussão acadêmica e formal quanto na troca de baixarias na internet. Repito: costumam ser visões antagônicas. Evidentemente, sempre há quem concilie ambas, mas é bem raro.

Para explicar um pouco mais sobre essas visões, preciso, antes de tudo, explicar a diferença entre sexo, gênero, e orientação sexual. Você pode confortavelmente pular este glossário se já souber o que são esses conceitos.

  • Sexo: é o componente biológico da identidade de gênero. Há o sexo masculino, o sexo feminino, e algumas variações relativamente raras, presentes em pessoas intersexo (não se usa o termo “hermafrodita” para seres humanos). O sexo masculino tem cromossomos XY, o sexo feminino tem cromossomos XX, cada sexo tem seus genitais, e é basicamente o que você aprendeu na pré-escola.
  • Gênero: é como você se identifica. Independentemente dos motivos para isso, nós observamos características psicológicas e sociais bem diferentes entre homens e mulheres. Seu gênero engloba essas características.
  • Orientação sexual: é por quem você se atrai. Caso você se atraia por alguém de gênero diferente do seu, você é heterossexual. Caso você se atraia por alguém de gênero igual ao seu, você é homossexual.

Pois bem. Costuma partir de feministas radicais a interpretação de que gênero é uma construção social. Quando falo em “feministas radicais”, não estou falando em extremistas: você pode ser extrema dentro de qualquer vertente do feminismo. O feminismo radical é uma vertente específica, e o nome radical vem da interpretação de que elas buscariam a raiz da opressão às mulheres. Qual é essa raiz? O sistema patriarcal, que se sustenta pelo capitalismo e pela própria ideia de gênero, ou seja: gênero é uma construção social, que surge como maneira de criar uma hierarquia, em que indivíduos do sexo masculino são superiores a indivíduos do sexo feminino. Para o feminismo radical, a diferenciação entre os papéis desempenhados por homens e mulheres na sociedade é nada além de uma forma de oprimí-las.

Já para a teoria queer, o gênero não é uma construção social… Não apenas. É uma teoria complexa, sobre a qual estudei muito pouco (não que eu tenha estudado muito sobre feminismo radical, mas a premissa dele é mais simples). O que é importante enfatizar sobre ela? É dentro da teoria queer que surge a ideia de o gênero ser algo não-binário, de modo que existiriam outros gêneros além dos clássicos homem e mulher. Isso varia desde aqueles que acreditam numa multiplicidade quase incansável de gêneros até aqueles que pensam na identidade de gênero como um espectro, permitindo que alguém se identifique apenas parcialmente como homem ou mulher.

Parabéns, agora você já sabe o que são as visões de mundo que tendem a receber a alcunha de ideologia de gênero! Agora você já sabe que ideologia de gênero não existe, e que o que existe são adeptos da teoria queer e feministas radicais, e, assim, pode tirar sarro de cada um desses grupos individualmente, certo?

Bem… Errado. Vejam bem, eu certamente não me identifico com os posicionamentos de feministas radicais, e não tenho paciência para estudar a teoria queer a fundo, mas, mesmo assim, não acho que esses sejam posicionamentos dignos de chacota. Eles merecem ser debatidos com seriedade, por mais que eu não tenha paciência ou interesse de participar de tal debate. Ainda assim, as questões de gênero afetam a minha e a sua vida. Como? Ora, tanto a teoria queer quanto as ideias do feminismo radical são apenas descrições distintas de uma mesma realidade, e embora as interpretações mudem, a realidade é uma, e é constante: nós vivemos em uma sociedade que divide muito claramente os papéis de homens e mulheres, e existem pessoas que não se identificam com o papel que receberam. Se isso é biológico, se é social, se é certo, se é errado são apenas interpretações, que não mudam o fato de que pessoas trans existem.

Pessoas trans são aquelas que, como foi dito, não se identificam com o papel que receberam. Tradicionalmente pessoas do sexo masculino recebem o papel de homens, e pessoas do sexo feminino recebem o de mulheres, mas há aqueles que fogem à norma. Essas pessoas existem, possuem uma individualidade e, como quaisquer indivíduos, possuem direito à vida, à liberdade, e à busca de felicidade.

Acredito que reconhecer na individualidade alheia um valor inalienável é tudo com o que devemos nos preocupar ao falar de outras pessoas. Não é preciso entendê-las para tratá-las com gentileza e dignidade, que deveria ser a prioridade. Eu admito minha ignorância: não sei qual a melhor maneira de compreender a existência de pessoas trans, mas essas pessoas continuarão existindo — ainda bem! Nós vivemos num mundo que depende de cooperação mútua para funcionar, e quanto mais pessoas diferentes puderem agregar suas ideias diferentes, maiores as chances de encontrarmos novas soluções para nossos problemas.

Por mais que você deteste a ideia de que algumas pessoas não se identificam com o gênero que lhes foi designado ao nascer, essas pessoas estão por aí, tentando se encaixar numa sociedade que está falhando com elas. São mais propensas à violência, ao suicídio, e ao desemprego, e boa parte disso poderia ser resolvido com respeito básico. Não é necessário gostar de ninguém nem acreditar em nenhuma “ideologia” para tratar com respeito e gentileza àqueles que nos rodeiam. O que muda no seu dia-a-dia se você chamar uma pessoa trans pelo nome que ela escolheu? O mundo por acaso se tornou um lugar melhor quando uma mulher trans (ou seja: uma pessoa do sexo masculino que se identifica como mulher) foi chamada de ele?

E eu sei que enfatizar a necessidade de cortesia não resolve todas as questões com as quais se preocupam aqueles que saem por aí expondo os supostos males da “ideologia de gênero”. Qual banheiro uma pessoa trans deveria utilizar? Em qual categoria pessoas trans deveriam competir nos esportes (tema sobre o qual o GATE, grupo de estudos sobre o qual falei no último post, fez um debate, que foi transformado neste podcast)? E se começarem a ensinar na escola do meu filho algo que vai contra os meus valores? Reconheço que essas são todas questões pertinentes, e eu tendo a dar uma resposta mais progressista a elas. Porém o que eu gostaria de argumentar é que nenhuma dessas perguntas tem uma resposta fácil, e as pessoas estão sofrendo enquanto nos perdemos em infindáveis debates sobre o que fazer.

A minha solução para isso? Sou pragmática: liberdade. Pessoas diferentes encontrarão soluções diferentes para um mesmo problema, e as várias soluções poderiam ser testadas e competir entre si. É claro, há um limite ético para quais soluções podem ser testadas, mas será que é mesmo tão arrojada a ideia de que, em estabelecimentos públicos, deveria caber ao dono a decisão de fazer banheiros mistos ou separados? É tão arrojado propor que alguns organizadores de competições esportivas dividam equipes segundo gênero, e outros dividam segundo sexo? E que tal se algumas escolas explicassem gênero como algo binário, e outras explicassem como um espectro? E se… As pessoas pudessem escolher viver como preferirem?

Veja, não estou advogando que esse é um sistema perfeito. Se várias soluções competem, vão aparecer muitas soluções ruins, e decerto muitas soluções boas. Por outro lado, suponha que o Governo Federal decida impor aos 209,5 milhões de brasileiros uma única solução para todas essas respostas. Se a decisão tomada for correta, o benefício será gigante! Agora pense se ela for incorreta: como mitigar um dano que foi imposto de maneira centralizada a milhões de pessoas dos mais diversos contextos? Eis a vantagem das soluções localizadas: o dano que elas podem causar impacta menos pessoa — ou seja: menos gente sofrendo as consequências dos erros. E não nos enganemos: os erros são parte imprescindível do desenvolvimento humano, é somente com falhas que podemos descartar como inútil, ou danosa, alguma resolução.

Em suma, ideologia de gênero é uma alcunha pouco útil, pois iguala visões antagônicas de mundo, mas esse é o menor dos problemas que assolam a existência de pessoas trans na sociedade. Nossa sociedade maltrata essas pessoas, e cabe a cada um de nós tratá-las com o respeito que lhes é devido. Se isso resolverá a todos os problemas? Não. Todavia, dentro dos limites da ética, deveríamos buscar soluções descentralizadas para as questões que surgem, de modo a tratar com a urgência devida os desafios enfrentados por pessoas trans, sem que precisemos passar por debates intermináveis — afinal de contas, por melhor que seja o debate, impor uma única solução a mais de 200 milhões de pessoas traz consigo um risco, por definição, gigantesco.

Obrigada por ler este texto! O que você pensa da questão das pessoas trans? O que poderíamos fazer — enquanto indivíduos — para melhorar sua qualidade de vida dentro da sociedade? Eu adoraria ler sua opinião nos comentários! Não se esqueça de deixar seus aplausos (de 1 a 50) se tiver gostado, e de me seguir nas redes sociais para não perder os próximos textos :)

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