CARTA ABERTA AOS CORAÇÕES PERPLEXOS (part. 1)

Gabriel de Vitto
prosódias
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6 min readAug 18, 2020

“O homem não poderá ser autenticamente livre nem promover a verdadeira liberdade se ele não reconhecer e se ele não viver a transcendência do seu ser sobre o mundo e a sua relação com Deus, porque a liberdade há-de ser sempre aquela liberdade do homem criado à imagem de seu Criador”.

- São João Paulo II, Mensagem para a celebração do XIV Dia Mundial da Paz.

Que a nossa era é confusa e tresloucada, ninguém duvida. Medo, ansiedade, tédio e angústia, são alguns dos traços que marcam o ethos do presente. No entanto, antes de qualquer outra coisa, convém esclarecer, em linhas gerais, o quão longe estamos do “ideal espiritual” dos nossos modos de pensar, agir e sentir. Há uma correlação intrínseca, no pensamento antigo e medieval, entre pensar e conhecer a verdade; agir e amar o bem; sentir e ser humilde. Em outras palavras, partia-se, com razão, do princípio de que a natureza humana precisa ser enriquecida por aquilo que lhe falta. Sem essa disposição, o homem torna-se o ser angustioso que hoje testemunhamos. Deste modo, para alcançar a felicidade neste mundo, o homem deveria, primeiramente, reconhecer que está incompleto, que está pela metade; maravilhar-se. Ora, o que é a maravilha?

Enrico Berti, filósofo italiano, diz acerca do maravilhamento: “a maravilha é consciência da própria ignorância e desejo de livrar-se dela, isto é, desejo de aprender, conhecer, saber. (…) A maravilha é a expressão da verdadeira liberdade, posto que nos liberta da necessidade e do resto dos desejos”(1). O ato de maravilhar-se provêm do exercício de nossa reflexividade; surge quando o homem, em posse do que precisa para sobreviver, começa a perguntar-se pelas causas da realidade que se apresenta a todo momento. Nesse sentido, sua postura assemelha-se muito com a de uma criança pequena, que indaga seus pais sobre a natureza e origem de absolutamente tudo. Não deixa, também, de guardar certa relação com o caráter lúdico da existência, onde já não importa nada além do objeto contemplado pelo intelecto. Essa é típica atitude do filósofo, daquele que ama a sabedoria.

Segundo Aristóteles, conhecer é a ação mais prazerosa e excelsa do homem, sendo a contemplação sua atividade mais elevada; destarte, diz o Filósofo: “Assim, para o homem, o será [feliz] a vida segundo a razão […] E esta vida será também a mais feliz” (2). Já Santo Tomás de Aquino, partindo da concepção aristotélica, a transcende, quando, iluminado pela fé, qualifica a contemplação como visão beatífica da Essência Divina, o ápice da união do homem com Deus, o momento em que pode vê-Lo face à face. Todo esse horizonte do conhecimento abre-se diante de nós por meio do maravilhamento com as coisas criadas, por uma contemplação que surge do espanto que subjaz na vida ordinária.

Outrossim, mais recentemente, a Igreja Católica tem enfatizado o grande valor da realidade da vida cotidiana e sua relação com o caráter universal da vocação à santidade. S. Josemaría di-lo de modo muito eloquente: “Tenho-o ensinado constantemente com palavras da Escritura Santa: o mundo não é ruim, porque saiu das mãos de Deus, porque é criatura dEle, porque Javé olhou para ele e viu que era bom (Cfr. Gên, I, 7 e ss.). Nós, os homens, é que o fazemos ruim e feio, com nossos pecados e nossas infidelidades. Não duvidem, meus filhos: qualquer modo de evasão das honestas realidades diárias é para os homens e mulheres do mundo coisa oposta à vontade de Deus” (3).

Para os fins desta carta, cabe ressaltar, portanto, que o mundo, enquanto realidade criada, é bom e deve ser amado em virtude de seu Autor. A realidade nos desperta para o já mencionado “maravilhamento” do intelecto que, como visto, conduz à contemplação desinteressada da verdade. Por outro lado, também leva-nos a agir livremente conforme o bem querido pela nossa vontade. Esta liberdade é uma propriedade da vontade mesma, que leva-nos à autodeterminação segundo o bem (4), que ordena-se numa escala de valor entre bens sensíveis, intelectuais e espirituais, culminando no Sumo Bem — no qual todos os bens menores participam e do qual provêm (5). Convertíveis entre si (6), bem e verdade identificam-se na infinitude de Deus, mas, para nós, homo viator, “homens peregrinos”, o bem excita a vontade e a verdade alimenta o intelecto. Ambos distinguem-se a partir da perspectiva humana.

O intelecto foi criado para contemplar a verdade e “descobrir” os bens em sua respectiva hierarquia; a vontade, por sua vez, foi criada para buscar a verdade e “conquistar” o bem. O homem é um todo indiviso — para ele, liberdade, conhecimento, amor e contemplação, não deveriam dissociar-se. Porém, apesar de ver este mundo fantástico e uníssono que se desvela diante de si, ele nunca poderá abarcá-lo completamente. Sua condição sempre será intermitente e precária. Com eloquência, exclamou o Apóstolo: “non enim, quod volo bonum, facio, sed, quod nolo malum, hoc ago!” (7). Mesmo os santos, os únicos que nunca estão sós neste mundo (8), vivem de modo imperfeito o sumo encontro da vida futura.

O então Papa Bento XVI, em sua Carta Encíclica Spe Salvi (Salvos na esperança), diz algumas palavras muito esclarecedoras sobre esse último tópico: “De certo modo, desejamos a própria vida, a vida verdadeira, que depois não seja tocada nem sequer pela morte; mas, ao mesmo tempo, não conhecemos aquilo para que nos sentimos impelidos. Não podemos deixar de tender para isto e, no entanto, sabemos que tudo quanto podemos experimentar ou realizar não é aquilo por que anelamos” (9). Que arrebatadora verdade antropológica! Buscamos sem cessar aquilo que, agora, nunca teremos por completo.

Poder-se-ia dizer que essa é uma verdade dolorosa, que sói ser um convite à loucura em que vivemos; contudo, trata-se de um apelo à humildade. Ubi humilitas, ibi infirmitas (10). A humildade nasce da humilhação de sabermo-nos incapazes de saciar com nossas próprias forças os desejos de infinitude que movem toda a alma. Quando a magnanimidade desencarnada do filósofo contemplativo confronta-se com a humilhação permanente da condição carnal, e toda contingência e contrariedade evidencia as fronteiras do ser finito — que nada pode por si próprio -, chega-se à constatação ontológica da miséria humana, a partir da qual pode-se afirmar que ser homem é ser vazio. Contudo, tal vazio tem apenas uma aparência de negatividade, “o espírito humano é um lugar” (11), e, supõe uma presença que lhe preencha.

O ser humano, em sua criaturalidade, é imagem e semelhança de Deus (12), apesar dos pesares. Ademais, segundo São Bernardo de Claraval, “humiliationem convertit in humilitatem” (13). Na vida feliz, duas realidades antropológicas distintas coexistem (14): a humilhação do homem frágil e pecador (que não consegue perfazer a si mesmo) e a humildade do homem redimido, que torna-se filho de Deus pela participação na filiação de Cristo (tornando-se, também ele, divino) (15).

Todo o trajeto que percorremos trata do caminho ideal de uma pessoa que luta para manter-se no status de ser-aberto. Ou seja, ao descrever em termos gerais a relação entre pensar, agir e sentir, descrevemos a abertura do homem ao mundo — e ao seu Criador — e a necessária relação de doação mútua que estabelece com ele. Na próxima carta, poderemos considerar o problema que surge com abandono desta realidade necessária, a saber, a perplexidade propriamente dita.

Notas:

(1) Enrico Berti. En el principio era la maravilla: las grandes preguntas de la filosofia antigua. Ed. Gredos. Trad. Helena Aguilà. Madrid: 2018. págs 10. Tradução nossa.
(2) Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1178a.
(3) S. Josemaría Escrivá, Amar o mundo apaixonadamente, homilia pronunciada em 8 de outubro de 1967.
(4) Henrique Elfes, O nominalismo. Disponível em: https://youtu.be/AqQtqBcb1os
(5) Platão, A República, 507b-509c [parte VI].
(6) Confr. Santo Tomás de Aquino, S. Th. Iª q. 16 a. 3 co.
(7) S. Paulo, Epístola aos Romanos, 7, 19. “Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero”.
(8) Octavio Nicolás Derisi, La persona: su esencia, su vida y su mundo, Instituto de Filosofía, Buenos Aires: 1949, pág. 40.
(9) Bento XVI, Spe Salvi, Paulinas, São Paulo: 2018, pág. 24
(10) “Onde há humildade, ali há debilidade”. Santo Agostinho, Sermo 196/A. (https://www.augustinus.it/latino/discorsi/index2.htm)
(11) Karol Wojtyła, A fé da Igreja, Edições CAS, Braga: 1980, pág. 47.
(12) Gen. 1, 26–27.
(13)“A humilhação converte-se em humildade”, in Cant. 34, II, 3, apud Saint Bernard et la Philosophie, org. Rémi Brague, L`anthropologie de l`humilité, PUF, Vendôme:1993, pág. 133.
(14) Confr. Op. cit., págs. 132–136.
(15) Confr. Fernando Ocáriz, Che impulso può ricevere la teologia dall’insegnamento di San Josemaría? in “Convegno Internazionale San Josemaría e il pensiero teologico”, Roma: 2013, pág, 6.

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