Essa leitura perigosa…

Jonas L.
prosódias
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6 min readAug 16, 2020

Felipe ficou cheio de orgulho quando seu filho de oito anos, Joaquim, pediu de presente de aniversário um livro. O pai estava convencido dos enormes benefícios da leitura, apesar de nunca ter conseguido chegar ao fim de um livro com mais de cinquenta páginas. Seu filho seria diferente, pensava. Homem bondoso e simples, Felipe era funcionário público no escritório da Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo, aquela famosa por exarar multas de trânsito. Com ajuda de sua esposa Ana, dona de uma pequena loja de doces, conseguia pagar uma escola de classe média alta para o único filho Joaquim. Essa educação cara parecia ter surtido efeito, a julgar pelo gosto literário que Joaquim desenvolvera. Numa coisa, pelo menos, a escola colaborava: as instalações dispunham de uma grande biblioteca facilmente acessível aos alunos. Lá Joaquim se esbaldava e voltava para a casa contando as historinhas que lera no dia.

Quando completou 13 anos, Joaquim pediu um livro muito estranho para sua idade: “Os Sofrimentos do Jovem Werther” de Goethe. Felipe, a princípio, não se deu conta de que esse não era um livro infantil, como os outros que Joaquim pedira. Definitivamente esse era diferente, mas o pai comprou o exemplar pela internet, como sempre fazia, e só percebeu a diferença quando chegou em suas mãos. Ficou impressionado, pois dessa vez o livro não tinha nenhuma imagem, nenhum desenho, nenhuma figura, só texto. Felipe ficou contente e desse fato concluiu que o filho estava avançando na leitura, tornando-se capaz de encarar textos mais densos. É claro que Felipe não lera nada mais do que duas ou três frases da obra.

O jovem Joaquim ficou fixado nesse livrinho de Goethe. Lia e relia. Estava sempre na sua mochila. Às vezes falava tentando imitar o estilo de Werther. Apesar disso, tudo parecia normal: o rapazinho tinha seus amigos, gostava de jogar bola e tirava boas notas.

Certo dia os pais receberam um telefonema da escola. Era a diretora que queria marcar uma reunião pessoal, coisa muito rara. O tema específico seria falado presencialmente e exigia certa urgência. A reunião foi marcada e para lá foram Felipe e Ana, preocupadíssimos. Será que Joaquim tinha se envolvido em alguma briga?

A diretora geral da escola e a diretora pedagógica receberam os pais em uma sala ampla na qual havia uma mesa circular de madeira com tampo de vidro e rodeada de cadeiras. Após os cumprimentos padrão, todos sentaram e a diretora geral começou a falar:

- Decidi marcar essa reunião para tratarmos de um tema que pode gerar graves problemas. Joaquim tem lido muitos livros que não são convenientes para a idade dele. Isso está provocando forte influência em algumas de suas ações. Uma colega de sua sala recebeu de Joaquim várias cartas românticas escritas em um estilo muito, vamos assim dizer, inadequado.

Ana ficou transtornada e disse:

- Desculpe, a senhora quer dizer que Joaquim tem escrito coisas… obscenas?

- Não, não! — respondeu a diretora geral — Não é isso, pelo menos não pelo que eu saiba. Chegamos a ler uma de suas cartas e não há nenhuma referência a isso. O problema é outro: ele escreve de forma rebuscada, parece um homem do século XVIII. E há traços claros de machismo na forma de escrever e na forma de, vamos assim dizer, pleitear sua colega…

Nesse momento, o pai não pôde se conter e deu uma enorme gargalhada, libertando-se de todo nervosismo:

- Ah! Então é só isso? Puxa, eu estava pensando mil coisas! O nosso garoto quer ter seu primeiro namorinho! Mas qual o problema? A menina não quer ele? Tudo bem, eu posso conversar com o Joaquim…

- Veja — interrompeu a diretora geral, agora um pouco nervosa — o problema não é esse. O problema é que um menino de 13 anos não pode escrever para uma menina da mesma idade como fazia o jovem Werther do livro que vocês deram de presente! Além disso ser antiquado, pode gerar uma mentalidade, vamos assim dizer, intolerante.

Sem que os pais tivessem tempo para responder, a diretora pedagógica complementou:

- Faço pós-doutorado em Pedagogia na USP — ela estava esperando desde o começo para dizer isso — e posso assegurar, com base em minha pesquisa sobre semiótica da escrita infanto-juvenil, que Joaquim tem o mesmo perfil de escrita de pessoas que sofrem o transtorno misógino, doença mental que vem cada vez mais afetando jovens. Isso pode ser muito grave.

A preocupação voltou a obscurecer os rostos e os corações dos pais. A diretora pedagógica continuou:

- Por sorte, no caso de Joaquim isso foi detectado em tenra idade e pode ser revertido com um pouco de esforço. Em primeiro lugar ele precisa abandonar essa leitura perigosa, precisa realmente parar de ler ou, pelo menos, ler outra coisa…

A mãe interveio:

- Mas Joaquim adora ler! Sempre achei isso ótimo…

A diretora geral veio suavizar:

- Sim, de fato! É ótimo que ele leia e nisso nós concordamos — aqui houve uma rápida troca de olhares entre as diretoras. — Ler é fundamental. Mas Joaquim precisa de acompanhamento. Por isso chamamos vocês. É importante que tenham critério na hora de presentear Joaquim com algum livro. Por isso, gostaríamos de sugerir uma série de leituras para ele. São livros adequados à sua idade e que vão ajudá-lo a formar uma mentalidade saudável.

- Parece bom… — disse timidamente a mãe.

A diretora geral complementou:

- Há, porém, uma parte mais difícil. Vamos pedir para nosso bibliotecário não emprestar a Joaquim livros, vamos assim dizer, inadequados. Além disso, se vocês permitirem, vamos estimular Joaquim a não ficar tanto tempo na biblioteca, principalmente nos intervalos e após as aulas…

O pai já estava querendo resolver o assunto e falou:

- Puxa, isso vai ser difícil para Joaquim, mas se for pro bem dele, então tudo bem. Vou conversar com ele e vou tirar aquele livro do alemão, vou jogar fora. Se está deixando meu filho louco, com esse transtorno aí que vocês falaram, então não vale a pena ler agora…

A mãe continuava um pouco preocupada:

- Mas se tirarmos o livro ele vai ficar triste e irritado. A gente precisa dar outro livro, pelo menos. Não quero que ele pare de ler.

- Sim — disse a diretora geral –, temos um livro melhor para Joaquim. Chama-se “As aventuras de Kim”. Gostaríamos de entregá-lo para que vocês presenteiem Joaquim.

Após mais algumas recomendações, a reunião encerrou e os pais voltaram para a casa um tanto confusos. Seguiram à risca todas as indicações da escola. No começo o processo foi doloroso, especialmente quando eles retiraram o livro de Goethe. Mas o tempo foi passando e Joaquim foi se acostumando, pelo menos aparentemente. Daquela primeira indicação da escola — “As aventuras de Kim” — o rapaz não tinha gostado nada. Essa obra contava a história de uma criança, não se sabe se menino ou menina, que descobriu, de repente, ser diferente dos outros: enquanto seus amiguinhos gostavam de sorvete de chocolate, Kim preferia sorvete de morango… Joaquim não viu nenhuma graça no livro e achou o protagonista muito mais chato do que Werther. Nada que o tempo não curasse. Pelo menos era isso que pensavam os pais e as diretoras.

Os anos foram avançando e o rapaz já contava com 16 anos quando os pais receberam outra convocação urgentíssima da escola. Agora parecia ser ainda mais grave. A diretora geral, na mesma sala e na mesma cadeira que sentara há três anos, disse com ar preocupado:

- A situação é gravíssima. Joaquim está acessando literatura no celular. Sim, eu sei, é difícil admitir…

Os pais enregelaram. Todo esforço dos anos anteriores fora em vão. A diretora continuava:

- Joaquim foi pego lendo no celular “Os Irmãos Karamázov” durante o intervalo. É um livro terrível, ultra-retrógrado e misógino. Amigos e colegas dele confirmaram que faltam apenas três capítulos para ele terminar de ler… Precisamos fazer alguma coisa!

A mãe, com o coração batendo forte, perguntou:

- O-o que podemos fazer? Talvez tirar o celular dele…

- Pode ser — disse a diretora –, mas não é necessário. Temos hoje filtros que bloqueiam literatura no celular. São muito eficientes e só deixam passar memes, imagens e textos de 280 caracteres na tela. Acho que são a melhor solução para, vamos assim dizer, ajudar Joaquim a se controlar.

Felipe e Ana respiraram aliviados por terem uma solução prática e saíram convictos de que estavam proporcionando a melhor educação possível para Joaquim.

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