como eu perdi meus preconceitos conhecendo uma ocupação

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6 min readDec 16, 2017

por Igor Zanche

Lembro da primeira vez que visitei a ocupação… Um conjunto de sentimentos despertou: uma mistura de desconcerto, confusão e um pouco de esperança.
Desconcerto: o contraste entre os dois lados da cidade eram gritantes, de um, pólos tecnológicos com investimentos em infraestrutura, recursos e educação, de outro, um terreno sendo ocupado por pessoas desempregadas, sem saneamento básico, vivendo em moradias precárias, com falta de iluminação e segurança.

Caio Chinen

No ínicio do projeto, eu estava bastante relutante com a ideia. Tinha grande preconceito com as pessoas com quem iríamos trabalhar, acreditava em um estereótipo que não convém detalhar neste momento. Mal imaginava a surpresa e o tapa na cara que eu teria. Reunião após reunião, visita após visita, comecei a me engajar mais, não muito por elementos internos mas sim por ver o brilho no olhar daquelas pessoas depois de cada ideia que levávamos, depois de entender os sonhos de vida, ver que muitos ali queriam ser médicos, advogados, donos de loja e que não tinham apoio nenhum para alcançar seus sonhos.

A ocupação de terra “Em busca de um sonho” está localizada a 9 km da USP Campus 1, quase na zona rural da cidade, em um vale onde se é possível observar os morros verdes ao redor, num terreno de quarenta mil metros quadrados — com preço estimado em 3 milhões de reais. São cerca de 160 famílias que vivem lá. Pessoas das mais variadas idades: recém-nascidos, crianças, jovens, adultos e idosos dividindo quase que uma única casa, já que as construções são barracos de madeirite. A privacidade manda lembranças. Seus moradores são muito mais que números, são histórias, experiências, medos, buscas. São sonhos de conseguir se livrar das dívidas de aluguel que os levaram até lá, de ir além e conseguir uma casa própria e quem sabe duas, para que possam cobrar aluguéis acessíveis para pessoas como elas foram um dia. Morar na ocupação não tem custo : entrada, energia, água e saída da ocupação é tudo gratuito, eles dão o seu jeito. O movimento que os apoia é o MTST ( Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), o qual possui um representante lá chamado Tininho, fornece apoio institucional e burocrático para que os moradores possam permanecer naquele local enquanto aguardam por acesso a moradia.

Moradores da ocupação de terra “Em busca dos sonhos”

“As visitas frequentes na ocupação alimentam o aspecto humano em meu ser. Percebo que as pessoas já nascem com um determinismo social: o que justifica eu estar estudando na USP e o menino Gabriel, com a família expulsa de sua casa, estar estudando de manhã e trabalhando a tarde? As escolhas foram deliberadas? Nesse aspecto a ocupação me faz construir um olhar mais crítico sobre o papel do governo e a integração da sociedade. Esse sentimento em mim deve sempre ser alimentado em doses homeopáticas e constante, caso contrário, mesmo sabendo da existência de vários Gabriéis, Márcias, Éricos, Pedros…, meu ser torna-se mais individualista e cego perante a minha função social.”

Daniel Rosella

São também histórias, como a de Érico, rapaz nascido em dezembro de 1987 em Iaçu, Bahia. Érico saiu da Bahia por falta de trabalho, em 2010 ele chegou em Ribeirão Preto depois de dias viajando de ônibus. Deixou todos os familiares para trás, indo em busca de uma vida melhor. Não conhecia ninguém em Ribeirão, mesmo assim dividia uma casa com mais diversas pessoas na mesma situação que a sua: uma espécie de Cortiço. Porém isso foi um fator crucial: com diversos contatos dentro da casa conseguiu diversos empregos, como jardineiro, eletricista e instalador de lousas eletrônicas — emprego que o levou a realizar uma instalação em sua terra natal, Bahia, e também na USP São Carlos. Ele conta que, devido a crise econômica que ataca nosso país, em 2015 ele ficou desempregado e não podia mais se sustentar em Ribeirão Preto. Foi quando se mudou para a ocupação “Em Busca de um Sonho”, em São Carlos. Ainda ficou um ano desempregado, até que houve a criação do projeto “Marcenaria Novo Sonho”, no qual membros do time Enactus CAASO-USP auxiliaram os moradores da ocupação a criar uma marcenaria.

É possível ler nas expressões faciais a esperança de um futuro melhor que se manifesta em cada um, na forma de sonho, dentro da Ocupação.
Esperança, maior, de ter um lar para abrigar os filhos, confraternizar com os amigos e aproveitar o júbilo que a vida lhes tem a proporcionar.
E é esse brilho de esperança que me atinge, ao por lá caminhar, e que me desperta o desejo e felicidade de continuar compartilhando o melhor de mim, para poder avistar, no futuro, um lugar melhor em todas as suas esferas tangíveis.

Bruna Freire

O contato do time com a Novo Sonho começou em 2016, quando o Enactus realizou visitas de prospecção e, em 2017, foi dado início às visitas de imersão na comunidade, nas quais o time tenta conhecer o maior número de pessoas, entender seus sonhos e analisar dificuldades.Com esse conhecimento, traçamos um perfil de possíveis projetos no modelo enactus, que visa atingir o maior número de pessoas, trazendo melhoria da qualidade de vida, acesso a conhecimentos básicos, preservando a natureza e atendendo as expectativas dos moradores.

Faz aproximadamente seis meses que trabalho com a ocupação e ainda a visito como se fosse a primeira vez. Independente de ter passado tantos meses, é uma lição visitar a ocupação, uma vez que se trata de uma realidade completamente diferente de tudo o que tinha visto, mas que somente serviu para me engajar mais no projeto. No final, tudo que vale é ver o sorriso dos moradores com uma “simples” melhora em algum aspecto da sua vida, ainda que com coisas que considero rotineiras e que passam muitas vezes despercebidas.

João Marcos

O primeiro projeto na ocupação foi, na verdade, a produção de artesanatos por mulheres, as quais sempre tiveram interesse em costura, mas tinham pouco conhecimento e foi então que nossa equipe atuou buscando capacitação das mesmas, estruturando um cronograma de produção e vendas, uma rede de escoamento e padronizando a produção.

Projeto Marcenaria em andamento

O segundo projeto criado foi a Marcenaria. O time já tinha a ideia há um tempo, então foi descoberto o interesse dos moradores Érico e Pedro. Poucas semanas depois eles já estavam com uma entrega de paletes de madeira usados (matéria prima do projeto) programada para a ocupação, já haviam conseguido todas as ferramentas para corte para o serviço e estavam confeccionando uma encomenda. Foi um momento de uau. Nós tínhamos somente dado a ideia e os moradores foram lá e correram atrás. Isso surpreendeu muito a todos! Mas melhor ainda foi ver a escalada da Marcenaria: no primeiro mês houve um retorno de 80 reais para os marceneiros, quatro meses depois eles estavam recebendo cerca de 400 reais cada um como salário. A melhoria na qualidade de vida, mesmo com essa pouca renda, é nítida.

“Mesmo vendo diversos filmes e documentários sobre situações análogas a essa, ter um contato direto com essa comunidade e seus problemas fez despertar um sentimento real sobre o problema. Atividades normais na minha rotina são, naquele local, tão complicadas. Insegurança e instabilidade são algo que eles têm que enfrentar todos os dias. Altruísmo define bem o que sinto pela ocupação. A cada progresso ou derrota do pessoal que nós trabalhamos é comemorado ou lamentado como se fosse algo que ocorreu com o nosso grupo.”

Bruno Alcantra

Retomando o início do meu relato, ver que eu estava errado na minha visão sobre a ocupação foi chocante e desafiador. Também me trouxe uma revelação : vivemos num mundo onde a empatia está ruindo. Mas também é um mundo onde a empatia nunca foi tão necessária. O mundo ,na mesma medida em que está ficando intolerante, está exigindo mais tolerância. Vejo que meu papel agora é também propagar a empatia.

Equipe que participa do Projeto. Eu de camiseta branca, no fundo

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