enxergando o quadrado na sociedade, autoconhecimento e conversas travadas:

Entrevista com a Desirée Carneiro, do Coletivo Elza Soares

Prosa
prosajornal
9 min readDec 15, 2017

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Este ano foi um marco para a EESC, para o Coletivo Negro Elza Soares e para o Movimento Negro da USP. Foram aprovadas na Escola de Engenharia de São Carlos cotas para Pretos, Pardas e Indígenas (PPI) para o ano de 2018. Além disso, no dia 20 de Novembro, celebramos o Dia da Consciência Negra e, nesse panorama, o Prosa conversou com Desirée Carneiro, participante do coletivo Elza Soares e estudante de Arquitetura e Urbanismo do IAU — USP. A entrevista na íntegra, que abordou assuntos como a formação do coletivo, relatos pessoais, perspectivas futuras de atuação e muito mais, você confere aqui.

Logo do coletivo Elza Soares — USP São Carlos

Qual o papel de um coletivo negro em uma Universidade?

— Desirée: Eu acho que quando a gente fala de universidade pública, principalmente essas daqui do sudeste que são muito representativas, tem uma defasagem em relação a quem entra nesses espaços, quem usa esses espaços e como que tá usando. A gente fez um levantamento uma vez do Elza que era: Quantos colegas negros você tem? Quantos professores negros você tem? Quantos funcionários negros têm no espaço que você usa na USP? Esses números eram muito diferentes. De funcionários era um número bem maior do que o de professores e de alunos, por exemplo. Então, eu acho que o coletivo negro vem com o papel de resistência e de colocar esse assunto dentro da Universidade. Eu acho que têm duas dimensões aí, tanto esse papel para fora de resistência, de embate, como um papel para dentro de apoiar esses estudantes que estão nesse espaço e se identificam desse jeito. Conversar questões, discutir e se apoiar.

Eu cheguei a ver no campus que vocês fizeram várias intervenções com perguntas espalhadas.

— É, o coletivo faz algumas ações pontuais e, não sei se vocês acompanham, em extracurriculares em geral, mas em coletivos eu vejo bastante que tem picos assim. Às vezes está rolando muito, tem uma galera, e às vezes não tem ninguém, se esvazia, não tem nada. Então, depende muito de como que tá funcionando mesmo. Quando tá funcionando a gente tenta puxar alguma coisa, puxar espaço, ver filme e discutir, ou fazer intervenções como essa. A gente tenta fazer coisas assim.

A segunda pergunta que eu queria fazer é: por quê Elza Soares? Como vocês escolheram esse nome ? O que a figura representa para vocês?

— Foi um processo assim, na real. No começo de 2016, acho, se juntou uma galera que tava discutindo isso e falou: “vamos fazer um coletivo, vamos começar a trocar ideia sobre isso”. Depois disso, mas qual vai ser o nome? “Vamo pegar alguma língua, com alguma referência, alguma palavra assim”. Mas que referência vai ser? Aí surgiu que ia ser uma pessoa mesmo, “vamos abandonar o negócio da língua que já foge muito da gente. Vai ser nossa identidade, vamos pegar uma pessoa”. Mas como vai ser essa pessoa? Daí alguém surgiu com a Elza por vários pontos: por ser uma mulher negra; Por ela estar viva, que é um referência massa por não ser tão distante, é alguém que tá aí, que tá produzindo e ela tem uma história de luta muito bonita e muito icônica; Ela tem a cara das pessoas, fisicamente também. Essas questões foram mais fortes, o fato dela ser uma mulher, ela estar viva e essa história dela, que a gente leu um pouco e foi bem encantador. A Elza teve uma história de luta em relação a resistência com as pessoas com quem ela se relacionou, em relação aos filhos. Toda a história dela amarra vários pontos de disputa de raça, por ser uma pessoa famosa e as pessoas falarem que ela não podia se relacionar com tal pessoa porque ela era assim. E mesmo assim ela estava lá, tava cantando e todo mundo curtia a música dela.

A história da carioca Elza da Conceição Soares, um dos ícones da música brasileira, é marcada por muitas dores: mãe aos 13 anos, viúva aos 21, ela nasceu na favela Moça Bonita, em Padre Miguel, passou fome, perdeu três dos sete filhos que teve, foi julgada pela sociedade ao se relacionar com Mané Garrincha, um dos principais craques do futebol brasileiro. Não à toa se transformou em uma figura marcada pela coragem. “Sonhar é o grande poder da mulher”, diz ela.

Depois de muita luta, esforço e sofrimento, foi eleita em 1999, pela Rádio BBC de Londres, como a cantora brasileira do milênio. A escolha teve origem no projeto The Millennium Concerts, da rádio inglesa, criado para comemorar a chegada do ano 2000.

Eu vi que recentemente ela lançou um clipe da música “A Carne”

— Sim. A Carne é uma música bem antiga dos anos 80. Aí ela regravou e lançou agora no dia da consciência negra. Tava até a Rafaela que ganhou no judô nas olimpíadas. Era outro ponto também, ela (Elza) tem sempre uma tentativa de diálogo com a galera mais jovem. Se você vê no clipe é uma coisa que parece super de agora.

Videoclipe de “A Carne” lançado no dia da Consciência Negra.

A carne mais barata do mercado é a carne negra
Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
Que vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos”

A situação do coletivo você já falou um pouco, e disse que tem altos e baixos , mas é de pessoas mesmo?

— De pessoas, é porque, eu acho, que o diálogo no campus em relação a isso é muito travado, tanto com os professores como com os alunos. É muito difícil trocar ideia, o que reflete o caráter do campus. Só tem gente branca e a galera não vê a necessidade de discutir algumas questões. Tanto que eu já ouvi: “ah, mas não tem racismo aqui dentro, não tem negro”. Coisas desse tipo, sabe, que você fala: “então tá bom, então não tem conversa”. Como a gente é relativamente um grupo pequeno, as vezes tanto disso de muitas pessoas ou poucas pessoas, quanto o próprio desgaste no processo. Ás vezes a gente tá só conversando: “ah, vamo se formar”, então a gente tá discutindo filme, discutindo texto, discutindo coisas. Às vezes a gente tem perna para fazer outras coisas, é isso.

Você pode citar alguns projetos e eventos que vocês participaram e que fizeram ?

— A gente tenta puxar uns debates, chamam a gente de vez em quando para participar de alguns espaços desses de discussão, a gente já foi em cursinho discutir sobre isso, em escolas chamaram, também, e espaços com outros coletivos, que é uma coisa também super importante. Essa realidade de conversa travada não é só na USP, é em vários espaços, em várias universidades. Então, o diálogo entre os coletivos, formar meio que essa rede, para trocar ideia, se fortalecer e ver como funciona outros lugares, como trazer para cá, isso também é muito importante. A gente vai em outros lugares e em outras universidades.

Elza Soares

Como foi seu processo de entrada no coletivo? Desde quando você chegou já viu necessidade de entrar no coletivo?

— Tinha tido uma conversa antes, mas não vingou e eu entrei quando começou a se formar mesmo. Eu acho que foi um processo muito delicado pra mim, de compreensão de identidade mesmo. Sou cearense, daí vim pro sudeste e o Brasil é um país muito grande, tem várias nuances em relação a esse assunto, mas é que eu sinto isso bem mais forte em relação ao nordeste: de falar branco e negro. Lá a gente tem muito o meio, o moreno, que na minha percepção agora também vejo como negro, mas na minha formação de pessoa nunca foi assim. E daí eu cheguei aqui e comecei a ser apontada muito mais como negra, senti isso muito mais forte do que eu sempre tinha sentido, mas depois com reflexão vi que isso também tava em outro lugares, é só uma questão de percepção mesmo. Lembro desse episódio específico, que uma menina falou assim “ah, você perdeu sua carteirinha da USP?” e eu falei “não, não perdi”, e ela: “ah é que uma menina falou que uma menina negra tinha perdido a carteirinha, achei que era você”, aí falei “ah tá bom” e fiquei com aquilo na cabeça. Comecei a trocar ideia com as pessoas e em algum momento falei: “acho que sou negra”. E daí começou esse processo de descoberta, junto com o Elza, de trocar essa ideia com essas pessoas para entender o que era isso, o que é uma coisa que não é muito fora assim. Boa parte das pessoas que formam, já passaram , trocaram ideia com Elza, tem essa questão de em algum momento haver essa afirmação, o que é super complexo em vários âmbitos. Quer dizer que quem entra aqui na USP não são os pretos mais escuros, ainda é quem talvez possa dar margem pra dúvida. Mas não que tenha dúvida, é negro é negro.

A gente falou um pouquinho do passado, acho legal falar um pouco do futuro. Como você vê o coletivo? Como você vê o campus?

— Eu acho que tem uma questão que vai ser um ponto de inflexão, que é a adoção de cotas na USP como um todo, aprovada no CO. Antes era era um coisa pontual, que alguns lugares adotavam ou não, e agora a USP falou, como instituição, que isso vai ser colocado. Então a reserva de vagas para a galera com PI, eu acho que é uma coisa que vai fazer muita diferença essa pessoas entrarem. Para se discutir e entender, que não é só entrar. Isso tem N implicações e N consequências e a dinâmica disso, assim. Eu acho que isso vai enriquecer muito mais. E aqui no campus, por exemplo, isso foi votado de cima para baixo. Não foi uma discussão que as pessoas entraram em um debate e decidiram que isso deveria ser feito. Eu acho inclusive que boa parte do campus discorda bastante. Eu acho que é o entrave que talvez as ações do coletivo vão entrar nessa questão, e assim como várias outras lutas, como as ações afirmativas na pós graduação, enfim.

Eu queria que você falasse um pouco também sobre como funciona o coletivo em si. Como vocês se reúnem? Como alguém pode fazer para entrar? Como funcionam as reuniões?

— O coletivo é para as pessoas negras. A gente abre espaço que é de discussão com todo mundo, mas a gente entende que ele é mais forte com essas pessoas trocando ideia. Para entrar é só colar, fazemos reunião no almoço, depende da semana, mas geralmente é na quinta. Teoricamente é toda semana, mas é isso, tem os ciclos e isso muda muito. Parte da reunião é de formação, então é pra gente trocar ideia de algumas questões e entender isso um pouco mais, e parte é de questões prática. Organizar alguma intervenção, alguma demanda que veio que tem que ser discutido, enfim, questões mais práticas Mas é muito fluído assim, a gente tá conversando aqui e eu falo: “ah, sei lá o que, branquitude”, você fala “mas o que é branquitude?” e eu também não sei explicar. Então vamos fazer uma informação sobre isso que eu também não to entendendo, aì a gente vai lá e conversa sobre isso. A gente se reúne aqui no IAU ou no CAASO.

Como você acha que sua vida, não só universitária mas pessoal também, mudou desde que você tá se reunindo e participando do coletivo? Que benefícios você acha que ele te traz?

Eu acho que nessa questão, que eu falei do início do Elza, de identidade de mim, assim. É você compreender a significância das coisas. Isso tá acontecendo comigo, mas não é só comigo que acontece, tem várias outras pessoas e eu acho que é uma compreensão mesmo. Não é você: “ah, estou reservando o meu quadrado na sociedade, agora eu sou assim”. É você entender que esse quadrado tá colocado pra você e a partir disso você entender como que você consegue flexibilizar isso, mas se eu não enxergar o quadrado, nunca vou sair. Então acho que vai muito dessa questão de identidade mesmo, eu me senti muito mais firme para dizer coisas que eu sou e que não sou depois disso. Foi uma reflexão pessoal muito nesse sentido, um autoconhecimento.

Foto dos membros do Coletivo Elza Soares.

CONTATO COM O ELZA:

O coletivo Elza Soares pode ser contatado através da sua página no Facebook : @coletivoelzasoares

Ou pelo e-mail: coletivo.elza.soares@gmail.com

por Leonardo Luquezi e Luiza Ferraz Furlan.

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