escolhi ser professor numa escola pública.

Aceitando um desafio de trabalhar com a realidade dura da maior parte do Brasil, num caminho de mais aprendizados que ensinamentos;

Guilherme Desiderio
prosajornal
6 min readDec 16, 2017

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aula durante o preparatório do programa

Quando passei na Engenharia de Produção do CAASO, jamais esperava que ao me formar seria professor de matemática do Ensino Fundamental 2 em uma escola pública de Cuiabá, no Mato Grosso. Sou o Bad da Produção 011 (também conhecido por Guilherme Desiderio) e faço parte da primeira turma do programa de formação de lideranças para a educação do Ensina Brasil.

Foi durante a faculdade que meu interesse em trabalhar com educação despertou. As experiências como representante discente, com o Colégio CAASO quando fui presidente do Centro Acadêmico e a militância política em São Carlos consolidaram o que eu sempre acreditei: a educação é ferramenta fundamental para a emancipação das pessoas e para a diminuição das desigualdades de oportunidades. Foi inspirado nesse poder de transformar da educação que aceitei o desafio de ser professor de uma escola pública vulnerável por pelo menos dois anos.

Para quem quer trabalhar com educação existem muitas possibilidades: lecionando, empreendendo, dando consultorias, trabalhando no governo ou no terceiro setor, entre outras. Porém, quando estamos para nos formar são poucas as opções de carreira que vemos para além dos programas tradicionais de trainee. Optei por estar em sala de aula justamente para poder viver a realidade concreta da educação pública, presente no dia a dia da grande maioria da população brasileira. Com toda certeza, essa experiência tem sido muito mais de aprendizados do que de ensinamentos.

Antes de entrar em sala de aula, procurei pelos índices educacionais do estado do Mato Grosso e da minha escola. Para a minha surpresa, na escola onde eu daria aula somente 3 de 68 alunos (cerca de 4%) demonstraram aprendizado adequado em matemática na Prova Brasil de 2015. Apesar das críticas que existem ao se comparar escolas de realidades muito distintas por meio de uma avaliação padronizada e de abrangência nacional, o número choca. E após os primeiros meses em sala de aula vi que a realidade também choca.

A heterogeneidade das turmas e a defasagem de aprendizagem de alguns alunos é muito grande. Do 6º ao 9º ano tenho alunos que não sabem escrever ou ler e que não dominam as quatro operações básicas de matemáticas. Concomitantemente, há alunos cuja aprendizagem é adequada para o seu ano. Cumprir com o conteúdo do currículo de modo que todos aprendam satisfatoriamente é um desafio imenso em uma sala tão diversa.

atividade em grupo com membros da comunidade de monitores

É importante reconhecer também a maratona que é ser professor, um trabalho que vai além do horário comercial. Essa imensa responsabilidade que é mediar o aprendizado certamente deveria ser mais reconhecida e valorizada. E não são poucos os obstáculos que temos que enfrentar diariamente, como burocracias, falta de recursos financeiros, disputas de poder internas e falhas de comunicação com as instituições do sistema. A situação é ainda mais complicada para aqueles profissionais que têm de trabalhar dois ou três períodos, em mais de uma escola, para conseguir sustentar suas famílias.

Se no âmbito do ensino superior a demanda por mais investimento público nas universidades é latente, nas escolas da educação básica não é diferente. Você sabia que as escolas de ensino fundamental e médio dispõe para o oferecimento da merenda escolar de apenas R$0,36 (36 centavos!) por aluno para cada refeição? As carências também são evidentes na infraestrutura física, na (in)disponibilidade de tecnologias, na falta de materiais de apoio pedagógico, etc. De fato, faltam recursos para se garantir uma educação de qualidade a todos.

Apesar do contexto parecer desfavorável, o brilho no olho de cada aluno ao aprender uma coisa nova não nos deixa desistir. Com o passar do tempo, descobri que por trás dos problemas de aprendizagem dos meus alunos existem histórias inimagináveis e muita superação. A Catarina*, por exemplo, viu o pai ser assassinado. Sua mãe a abandonou e ela é criada pela avó e por um tio. Aos 4 anos, depois que seus responsáveis foram dormir, resolveu fazer um chocolate quente sozinha e teve o corpo todo queimado. A ausência de uma referência materna ou paterna, a falta de afeto, o bullying sofrido ao longo da sua infância por conta do seu corpo, enfim, esses e outros fatores afetam consideravelmente o seu subconsciente e o seu aprendizado.

O papel do professor muitas vezes ultrapassa o de promover a aprendizagem dos alunos. Professor é referência, é pai ou mãe por cuidar, é psicólogo por ouvir, é amigo por compartilhar (obviamente dentro dos limites éticos e profissionais que exigem a relação professor — aluno).

Professor Guilherme Desiderio e seus alunos construindo sólidos geométricos

Após cerca de nove meses em sala de aula me arrisco a citar alguns problemas e caminhos para mudarmos essa realidade.

  1. É preciso capacitar os gestores das escolas. Os profissionais que são legitimamente eleitos para assumir os cargos de gestão quase sempre não tiveram formação adequada para isso. O diretor é peça chave e deve se aprofundar, ao assumir essa posição, em temas sobre gestão, habilidades de liderança e habilidades interpessoais para articular a comunidade escolar em prol do aprendizado dos alunos.
  2. É preciso desburocratizar o cargo do coordenador pedagógico. Enquanto esse profissional deveria estar apoiando pedagogicamente os professores, traçando estratégias conjuntas para diminuir a defasagem e potencializar a aprendizagem, ele é levado e gastar todo o seu tempo e energia na resolução de outros problemas e burocracias. Para isso, caberia ter um outro profissional que o apoiasse nessas questões.
  3. É preciso oferecer formações continuadas de qualidade para todos os professores. Ouvimos constantemente que o mundo está mudando rapidamente e isso reflete no modo como aprendemos. É preciso investigar e trazer novas metodologias que promovam uma aprendizagem coletiva e significativa para a sala de aula, capazes de desenvolver também as habilidades do século XXI. Além disso, a escola tem se aberto a receber pessoas com deficiência e há grande dificuldade de garantir a inclusão com qualidade desses alunos nas salas de aula.
  4. É preciso ter escolas acolhedoras. Além da estrutura física precária, com a falta de espaços adequados para o ensino (quadras cobertas, laboratórios, bibliotecas, salas climatizadas, lousas, etc.), a escola também não deveria ser autoritária. A reforma e adequação dos ambientes da escola devem acompanhar o envolvimento da sua comunidade nos processos de gestão e tomada de decisão, de forma transparente e democrática.
  5. É preciso ter mais investimentos na educação pública. Diversos estudos apontam a correlação entre a educação e o desenvolvimento econômico de uma região ou nação. Transformar a realidade das escolas e valorizar a carreira docente, de modo a atrair novos talentos e qualificar os profissionais atuais, custa caro. Os cortes que a educação vem sofrendo nos últimos dois governos (Dilma e Temer), da ordem de dezenas de bilhões de reais, têm nos distanciado desse caminho.
  6. Viver os complexos desafios da educação não é tarefa fácil. Exige resiliência e persistência. Não há um dia sequer que eu não acordo às 5h40 disposto para ir à escola. Isso é o significado de se trabalhar com propósito. Para mudarmos esse cenário precisamos de muita gente boa atuando em diversas frentes para garantir educação de qualidade a todos. Afinal, se não nós, quem? Se não agora, quando?

* Catarina é um nome fictício usado para preservar a identidade da aluna.

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