Mirror, Mirror On The Wall…
Ele era diferente e sabia disso. Desde pequeno, conseguia ver o que os outros não viam. Tudo começou em um dia normal, ele estava escovando os dentes em frente ao espelho do banheiro, em pé, em cima de um banquinho. Preparava-se para dormir, como sempre fazia. Ao observar seu reflexo no espelho, notou algo diferente. Gritou de pavor, a mãe veio correndo em seu socorro. Naquela noite ele não dormiu, chorava desesperadamente e tinha medo de qualquer um que se aproximasse. Refugiou-se embaixo das cobertas.
Aquele foi o início. Com o passar do tempo aprendeu a não ter medo, aprendeu a encarar o que só ele enxergava com naturalidade. Mas nunca mais se olhou no espelho.
Não contava o que via, havia tentado na infância, feito desenhos, mas os pais acreditavam ser fruto da imaginação infantil. Não era.
Durante a adolescência, era alvo de brincadeiras inconvenientes dos colegas. Seu comportamento de isolar-se e o caderno repleto de desenhos bizarros eram a causa. Um professor notou a exclusividade do menino, levou seus desenhos a conhecidos do ramo e o menino estourou! Virou sucesso! Em pouco tempo, seus desenhos estavam por toda a parte, em cartazes, camisetas, capas de cadernos. Todos admiravam seu talento, mas não entendiam o que tudo aquilo significava. Em uma entrevista para a televisão, o segredo foi revelado: “Eu vejo a essência das pessoas”.
Por trás de ossos e músculos encontra-se algo maior: o que as pessoas são. Nas palavras do garoto, não é algo bonito de se ver. As cores são vermelho, azul e preto, às vezes cinza, em pinceladas bruscas, ásperas, algumas vezes grossas, outras finas. Rabiscos esquizofrênicos saem através da pele das pessoas, fazem piruetas sobre seus rostos. Era isso que ele via, ao mesmo tempo em que não era. Não sabia explicar, era algo muito complexo, os desenhos davam uma ideia, mas não eram a expressão literal do que seus olhos captavam.
Dependendo do grau de “bondade” da pessoa os riscos eram mais finos, se a pessoa era “ruim”, mais grossos. O mesmo valia para as cores, tons de azul e cinza para os “bons” e vermelho vivo e preto para os “ruins”. Mas a maioria das pessoas juntava vermelho e azul, formando nos pontos de encontro a cor roxa.
Quanto mais tempo de vida a pessoa tinha, mais rabiscos adicionava ao seu rosto. Não conseguia mais enxergar o rosto dos avós, via somente os traços e as cores.
As palavras dele estarreceram o mundo. Seria ele maluco ou dotado de algum dom? A entrevista causou um furor ainda maior em cima dos desenhos. Seu telefone não parava de tocar, todos queriam ser retratados, saber como realmente eram.
Fugiu, exilou-se num vilarejo, mas foi caçado pelos militares. Queriam usá-lo para detectar marginais, terroristas, pessoas consideras por eles como ameaças. Passava os dias atado a uma cadeira, confrontando fotos e assistindo vídeos. Só fechava os olhos para dormir, não piscava, pingavam colírio para que não fosse necessário. Comia e fazia suas necessidades através de sondas, tornara-se um monstro, uma máquina da verdade.
Um agente entra na sala, trazendo uma pasta na mão. Joga sobre a mesa.
- Nosso alvo é um terrorista sul-americano que estava escondido na Amazônia. Achamos ter contato com a Al-Qaeda, joga vídeos na internet falando sobre revolução das armas, sobre união por um país melhor, sobre atentados em prol do poder popular. Temos informações que ele está planejando algo. Acreditamos que este senhor da foto, pego ontem na fronteira após uma mega operação, seja ele. Precisamos da sua confirmação.
Observando a foto calmamente, o garoto diz:
- Vejo muitos traços azuis, finos, sobre o rosto desse homem. Não é alguém mal.
O agente debruça-se sobre a mesa. Está cansado de todo esse circo e de todo esse culto em torno de um moleque que, claramente, tem problemas mentais.
- Escute aqui, seu doente! É ele, eu sei, todos sabem, precisamos dar satisfações ao povo! Não minta para mim! Para falar a verdade, não acredito em você, estou aqui fazendo papel de idiota porque meu “chefe” acredita e precisa ouvir de você que este senhor aqui é ruim.
- Mas não é.
O homem perde o controle!
- Não é o cacete! Ele é um terrorista! Para com essa palhaçada!
- E quem seria bom, você?
- Maluco, retardado e filósofo, que ótimo!
Com um sorriso cínico estampando o rosto, ele ergue os olhos e encara o agente. A atmosfera da sala muda drasticamente, com tom de propriedade ele profere as seguintes palavras:
- Sabe por que me agride? Porque tem medo. Medo do que eu vejo. Todos me invejam, mas ninguém sabe como é ver o que eu vejo, é da boca para fora. Mas você, caro agente, realmente gostaria de ser como eu. Carrega tanta desconfiança consigo que, por um segundo, gostaria de ver as verdades que eu vejo. Desconfia de todos, aqui no trabalho, dentro de casa… Tornou-se um paranóico, com planos de vingança contra quem sequer você sabe se realmente fez algo. Eu não me olho no espelho, porque tenho medo do que posso encontrar, e você faz o mesmo.
O agente afasta-se da mesa, com raiva. Abandona a pasta, dá as costas e caminha em direção à saída.
- Não quer saber o que vejo, não é? Não se preocupe, logo vou embora, eles dizem que estou revelando coisas demais.
- Eles quem?! — pergunta o agente, de costas e parado em frente à porta.
- Essa informação vai para o túmulo comigo.
O agente sai da sala.
São três da manhã. Uma sirene tira todos de seus cômodos. Alerta vermelho. Escancaram a porta, paramédicos correm em direção à cadeira de metal. O soltam, tentam reanimá-lo, em vão. Hora da morte: duas e cinquenta e sete. Causa da morte: parada cardíaca. O agente entra na sala, depara-se com o corpo de boca entreaberta e olhar paralisado.
Faz seis meses, mas certas palavras continuam passeando na mente do agente:
Eu não me olho no espelho, porque tenho medo do que posso encontrar, e você faz o mesmo.