E o tal do documentário do Huck?

paula
PseudoResenhas
Published in
6 min readMar 19, 2022

Temos a tendência de racionalizar nossa existência, vivendo a base de certezas incertas que norteiam nossos dias.

Acontece que a vida não é feita de certezas. Estamos presos em ciclos de começos e rupturas incessantes.

O documentário Domingão com Huck: A história da história retrata uma dessas rupturas, onde a certeza deixa de existir e todo o resto é questionado.

Cansada de investir em documentários de subcelebridades, a Globoplay finalmente coagiu alguém da casa para gerar conteúdo em sua plataforma.

Um trailerzinho resume a obra antes dela começar, indicando que sua premissa é revirar a lata de lixo das desventuras que acometeram a estreia do Domingão com Huck.

Depois disso, o próprio entra em cena como se estivesse prestes a fazer um vídeo de desculpas após ofender 14 minorias. Nisso, o entrevistador segue a cartilha de qualquer enlatado do gênero documental e pergunta a Luciano qual seu nome, sua idade e da onde está falando.

Luciano chama o filhote para ver o contrato do programa de domingo, e ele, como um bom pré-adolescente, não está nem aí

Momentos antes de ter a narrativa arrancada de suas mãos, Luciano caminha tranquilamente pelos escuros corredores do Projac, promovendo seu carisma ao cumprimentar um por um enquanto a pós produção coloca sons nítidos de seus passos sendo que o microfone está muito longe para captar as pisadas.

Os estúdios Globo parecendo um bueiro

Quis o acaso que a atração antes de sua estreia fosse aquele fatídico jogo da Seleção. E quis mais ainda o traiçoeiro destino que o jogo fosse cancelado devido ao tumulto da vigilância sanitária, que meteu a bicuda nos argentinos em campo e, por consequência, alterou toda a programação vespertina da emissora. De longe, esse foi o único assunto relevante do dia, deixando Huck completamente de escanteio.

O começo do fim

A tempestade numa tampinha de remédio está formada. Correria nos bastidores, preocupação e pânico — com direito a muito zoom nos poros de Luciano — embalam as cenas seguintes apenas para preencher tempo de tela, já que, na realidade, Huck não faria o programa ao vivo, apenas entraria nos intervalos entre uma matéria e outra para fazer comentários que não agregariam em nada o conteúdo anteriormente visto.

Huck acompanha em contas não-oficiais o desempenho de seu programa

O apresentador afirma que, caso tivesse entrado ao vivo naquele dia, teria que enrolar durante meia hora por falta de conteúdo. Até aí, nada fora do comum. No sonífero quadro Quem Quer Ser Um Milionário, a média de tempo entre uma pergunta e outra é de dez minutos. A verdade é que o público nem perceberia que ele estaria enchendo mais linguiça do que o normal.

#HuckMereceRespeito

Com o tópico ‘estreia desastrosa do Domingão’ encerrada, pode se supor que o doc está prestes a fechar as portas, mas ele ainda respira por aparelhos.

A partir desse momento, fica evidente o motivo da existência do documentário: Sabe quando você recebe uma migalha de crítica e acaba sem querer gastando uns bons milhões em uma obra que mostre o seu lado da história para forçar certa empatia do público? Então.

Abrem-se duzentas linhas temporais com filmagens de anos atrás recheadas de cenas aéreas sem finalidade alguma e depoimentos da equipe para mostrar o caráter íntegro de Luciano.

Em meio a Huck lacrando sem camisa, falando um inglês questionável e uma grande cena de transição onde ele atrapalha a hora do rush, ficando parado em meio a uma estação movimentada enquanto o pessoal passa apressado, o inevitável acontece: Huck destranca os portões do inferno e começa a falar sobre política.

A festa do egosearch na firma

Apesar do nosso patriota estar há uns bons anos dando a entender que tem interesse em participar da corrida presidencial, ele desconversa as muitas vezes que o tema é levantado. Mas infelizmente, não o suficiente para que evite o assunto.

Uma meia hora do doc se volta a questões políticas básicas para que Lu possa lacrar muito falando sobre as desigualdades sociais que ele tanto ama na companhia de ilustres governadores centristas que garantem seus cinco segundos de aparição na obra.

É neste ponto que se entende o documentário em sua totalidade. Ele não surgiu com um propósito, simplesmente saíram estocando trilhões de gigas no HD com gravações de Huck em situações diversas pensando que, talvez, um dia, haveria uma narrativa para conectar todas essas filmagens soltas. No fundo, o caos da Anvisa foi o pretexto perfeito para se construir a história do documentário, mas que, da metade para o fim, se perdeu por completo e acabou virando uma biografia dos últimos dois anos da vida de Huck.

Nada como debater política com o grande Eduardo Leite

Após umas boas cenas do nosso rei dos domingos se autopromovendo como grande líder revolucionário em países com IDH acima de 800, Huck volta ao Rio de Janeiro, dá um rolê na van da prefeitura e sai pelas ruas beijando a mão de desconhecidos e esperando a câmera desligar para comprar votos(¹).

Huck lendo notícias sobre ele mesmo

Rola um papo meio Seu Madruga sobre amar seus inimigos com um gringo que ninguém se importa e corta para a tal Conversa com Bial, onde Huck afirma que não seria candidato em 2022 e todos os principais meios de comunicação do país correm para dar as boas novas.

Alguns são razão. Huck é coração. Cada vez que seu nome é mencionado sem estar seguido de três adjetivos positivos, um VT com trilha dramática ganha tempo de tela. Após a imprensa anunciar algo que ele mesmo havia falado, o melodrama toma conta.

Huck arranca os cabos do computador dramaticamente após a entrevista e fica mumificado por uns bons segundos até dar tempo de passar todas as manchetes na tela

Após o tema política ser engavetado, temos (mais) cenas do apresentador sem camisa na Amazônia e um arquivo confidencial preenchendo intermináveis minutos até voltarmos ao seu drama pessoal: Huck afirma nunca ter apanhado tanto da imprensa em relação ao seu programa de domingo.

E, durante seu emocionante desabafo, afirma que faz sim assistencialismo e não vê problema algum nisso, já que ajuda pessoas necessitadas, e não artistas famosos — ele só esqueceu de mencionar que a ajuda acontece com toda uma equipe de filmagem registrando cada movimento, exatamente com o intuito da autopromoção. Mas relevemos, pois o homem está sofrendo.

Como bem sabemos, o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã. Trilhando o curso natural das coisas, o segundo Domingão com Huck vai ao ar e o documentário quase convence o espectador de que todos os ajustes necessários foram feitos no programa e o que público voltou a aprovar os mesmos três quadros que vão ao ar todo domingo.

Mais inflação de ego

Mesmo após todas as pautas se esgotarem, ainda tem uns bons minutos sobre a tal pergunta do milhão e mais um festival de depoimentos dos funcionários.

Até em seus momentos finais, o documentário continua seguindo a cartilha com louvor. O apresentador responde a pergunta “como você vê o Domingão no futuro?”, que o dá a deixa para terminar em um tom poético.

E na hora dos créditos subirem, mais uma surpresa: Fotos de Luciano fazendo o bem sem olhar a quem enquanto “minha vida é andar por esse país” embala o último suspiro da obra.

(¹) Especulação. Favor não meter processo.

--

--