Um Natal Cheio de Graça: Gkay e o fantasma do Natal presente

paula
PseudoResenhas
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9 min readDec 21, 2022

Mesmo após vir a público notícias sobre o conturbado set do novo filme de Natal da Gkay na Netflix, que envolvem surtos durante as gravações e atrasos recorrentes por parte da diva, além de uma possível contaminação por sapinho, a obra infelizmente não furou a bolha indie, mas nem por isso deixa de ser o filme natalino mais disruptivo da década.

Anualmente, o que nos faz perceber que o Natal bate à porta é a propaganda natalina da Dolly, onde o nosso herói, e mascote da marca, espia sem pudor algum a janela do Papai Noel. Felizmente, o bom velhinho não chama a polícia, e juntos eles percorrem alguns bons quilômetros de céu estrelado enquanto fazem a alegria da criançada, que vai acordar na manhã seguinte com uma garrafa pet de dois litros para chamar de sua.

Te olharei até que me entendas

Esse ano, porém, uma nova tradição se instaura com o lançamento do filme Um Natal Cheio de Graça, estrelando Gessica Kayane e alguns ex-globais e subcelebridades. Se Gkay já marcou o carnaval com o seu filme de sucinto nome, Carnaval, agora ela também entra no imaginário popular durante as festas de fim de ano.

Na obra somos apresentados ao protagonista masculino, vivido por Sérgio Malheiros, porta-voz da denúncia no RH sobre a conduta anti profissional da nossa farofeira, que barbarizou em uma festa com a igualmente subcelebridade Anitta, e não poupou os detalhes sórdidos no set.

Na trama, Serginho, após um dia de cão no trabalho, resolve dar uma passadinha na casa da sua até então, namorada, e se depara com ela sendo um mero artifício do roteiro para a história avançar. A atual, em um lapso de massa cinzenta, resolve praticar atos carnais com outra pessoa na mesma faixa de horário em que o cônjuge provavelmente já a visitou de surpresa milhões de vezes, e rapidamente vira ex.

Nosso muso sai correndo em desespero após o baque e quem toma o próximo susto é o espectador quando Gkay, que nesse universo se chama Graça, entra em cena ofegante e gritando ‘pega, ladrão’ como se estivesse acabado de sair do vagão do Zorra Total junto com a Valéria Bandida.

Abriria o portão?

Ao se trombarem, Serginho cai perfeitamente sobre a recém assaltada e os personagens ficam com seus lábios a meio metro um do outro, fazendo o espectador questionar se é possível contrair sapinho a essa distância ou somente com a troca de saliva.

Alerta de gatilho

Após o incidente, que quase leva o nosso protagonista para a fila do SUS, a obra mostra que é mais do que mero produto midiático, já que retrata a perdurante luta de classes encabeçada por Gkay, a pobre metafórica, e Serginho, o representante da classe nepotista, que trabalha há décadas na empresa fundada pela avó.

Por vezes, Kayzinha crê estar canal do Whindersson, e acaba se excedendo na quantidade de piadas sobre as dicotomias entre a vida de rico e a vida de pobre, mas toda crítica social precisa de um pouco de humor, então relevemos.

Gkay faz Serginho tirar a camisa para estancar um sangramento inexistente

Não satisfeito em elucidar as questões sofridas pela população marginalizada, o filme ainda denuncia a total falta de competência das autoridades para atender as vítimas de trombadinhas, tal qual a nossa comediante. É quase um milagre os roteiristas terem conseguido vender essa ideia para uma empresa multimilionária como a Netflix mesmo com tantas críticas ao modelo das sociedades ocidentais.

Sem lenço nem documento, nossa diva tenta convencer o hater da Anitta de que deve passar o Natal na casa dele, um completo desconhecido a quem ela possivelmente infectou.

Distanciamento social

E, talvez, em algum nível de subconsciência, nossa contaminada saiba que está imersa em uma comédia romântica, e, portanto, precisa engatar um clichê para acalentar o público. Então, ela prontamente convence o co-protagonista de que para evitar o constrangimento de contar para a tataravó de 208 anos de Serginho que ele tomou um chifre ao vivo, mesmo com ela provavelmente muito mais preocupada com os números da Telesena, a escolha mais intuitiva seria formar um casal falso para passar o Natal em família. E como quem não tem nada melhor para fazer, ele topa.

O pseudocasal chega de helicóptero no Palácio do Jaburu familiar e, após alguns minutos de peripécias e do humor pobre descobre que existe fogão com seis bocas, Gkay conhece a tal família, e um dos membros é o Luccas Neto com um filtro do FaceApp que o envelhece 50 anos.

Em breve mergulhando em uma banheira de Corega

Talvez a fluidez dos enredos confunda os desacostumados com a arte em seu estado mais bruto, como, por exemplo, nas diversas cenas em que a família estranha Gkay se portando como uma criança de oito anos mas não se importa com o Luccas Neto do INSS fazendo coreô do Tiktok no meio da sala. Outra cena é quando a temida matriarca da família informa que vai escolher o próximo dono da empresa a partir da avaliação que fizer dos membros da família unicamente na noite de Natal, como se ela não convivesse com seus os próprios parentes — e funcionários — há pelo menos 3 décadas e não soubesse os pontos fortes e fracos de cada um.

Felizmente, para refrescar a memória da anciã, é colocada uma personagem que explica os demais personagens para que o roteiro não perca tempo explanando coadjuvantes que nada acrescentam à história. Ao poupar as três paginas necessárias para tais explicações, o filme mostra que possui muita consciência ambiental, além do domínio da linguagem metalinguística.

Apesar das reclamações nada anônimas de que Gkay estaria contaminando a todos no set, ela ainda segue imparável rumo a uma nova pandemia

Mas nem tudo são flores. Nossa comediante carrega pesados gatilhos da época em que seu pai fazia bico de Papai Noel no shopping. Os motivos ficam a cargo do espectador decidir, pois, em uma escolha artística, eles permanecem ocultos.

A partir dessa cena são garantidos mais 3 pontinhos de aprofundamento de personagem, que sela o seu encontro contínuo com o Fantasma do Natal Passado. Este a atormentará até que nossa protagonista aprenda a lidar com ele.

A futura campeã do troféu Melhores do Ano 2023 mostra todo o seu potencial de encenação, indo rapidamente do humor para o drama sem escalas

A oficina de roteiro dos escritores da obra se faz valer quando Gkay desiste e não quer ir de jeito nenhum para a festa de Natal da família e, no minuto seguinte, é como se ela tivesse nascido apenas para participar de tal confraternização, evidenciando que os roteiristas escreveram uma linha cada e as juntaram no final, desafogando o trabalho e fazendo dessa uma experiência mais prazerosa no ambiente corporativo.

Em apenas algumas horas de convivência com a família, nossa boa samaritana conquista a todos com o seu carisma e amor no coração. Infelizmente a câmera não pegou nenhum desses momentos, talvez em uma crítica ao fato de sermos seres extremamente visuais, mas, se os personagens dizem, a gente acredita.

Agora com a família reunida e sem enredo, é hora de tomar um tempinho de tela com gritos e quedas, faltando apenas tortadas na cara e uma chafurdada na lama para virar uma clássica novela das seis.

E solta a trilha de risada

A personagem de Gkay é tão complexa que fica nítido aos olhos do espectador, não sendo necessário, por parte dos roteiristas, definir demais traços de personalidade para nossa influencer além do pai natalino. Após uma inocente piada sobre um Papai Noel aleatório do shopping feito por seu futuro par romântico, Kay se engatilha e precisa de muita empatia para se recuperar.

Do mais absoluto nada, nosso protagonista percebe que está apaixonado por ela e tenta um beijo, mas a nossa musa, munida de um altruísmo invejável, recusa e o mantém saudável por mais algumas cenas.

De volta à mansão, e em meio a um baile de Natal pioneiríssimo em terras brasileiras, o futuro casal dança ao som de Taylor Swift até Gkay aterrorizar e expor a pobre família a mais nova trend do Tiktok.

Tubarão, te amo?

Depois de ensinar um pouco de cultura para a família carola, nossa dançarina engata um breve discurso expondo a matriarca e o controle psicológico que ela exerce sobre os parentes, e, rapidamente, muda a mentalidade da família toda, que aceitou por sessenta anos todos os caprichos da velha. Mas a madame aceita de bom grado a crítica construtiva, pois também está mudada após a passagem do furacão Gkay.

Em determinado momento, Gkay quebra o nariz da velha, mas tudo bem, já que nossa influencer vai compensar o dano com uma rino patrocinada na clínica do Dr. Rey

A família resolve se amar e se aceitar acima de tudo e o nosso protagonista é escolhido para ser o dono da empresa. Tudo fica bem quando acaba bem, mas ainda faltam 40 minutos de trama.

Novamente, fantasmas do passado voltam para aterrorizar nossa Kayzinha, e é revelado que a musa é golpista e cada ano escolhe uma vítima para passar o Natal em sua casa. Definitivamente, esta é uma modalidade de golpe arriscadíssima, pois, se der errado, o crime só poderá ser cometido novamente no período de um ano. O cara briga com ela, ela briga de volta, ele corre para pedir desculpas mesmo tendo razão, ela foge e nunca mais dá sinais de vida... Enfim, coisas de relacionamento.

Gkay novamente nos encanta com sua versatilidade dramática

Após dias de depressão profunda, o futuro ex presidente da empresa se demite por não aguentar ficar longe de Gkay, gasta todo o 13º com impressão na gráfica mais próxima e espalha cartazes pela cidade toda com a cara da sumida com recompensa de cinco centavos para quem encontrá-la.

Cartaz nunca divulgado da campanha da Gretchen para prefeita em Itamaracá

O espectador pode até achar que, ao espalhar a fuça de uma criminosa por aí, o nosso protagonista estaria facilitado o trabalho da polícia, mas não esqueçamos que nesse universo as autoridades estão mais preocupadas em entreter do que cumprir demandas.

No meio da busca pela Gkay, porém, uma cena faz o filme cair de 10 para 9.9 no IMDB quando uma figurante qualquer fala, sem a menor decência, que queria tanto que encontrassem a Gkay pois ela é boa ‘rebolando a raba’ ou coisa do tipo, como se estivéssemos em 2017 num encontrinho de adms do Quebrando o Tabu.

Após essa baixa, Serginho resolve finalmente utilizar a internet para encontrar sua musa inspiradora, abrindo uma live no Instagram do Luccas Neto e cantando uma música para milhões de pessoas, que surpreendentemente adoram assistir a um conteúdo nada a ver com o qual eles seguiram o perfil para acompanhar. Ecleticidade é isso!

Nesse meio tempo, alguns coadjuvantes que nunca abriram a boca dizem as suas primeiras palavras para garantir dez reais a mais de cachê e Gkay é surpreendida pelo fantasma do Natal presente, encarnado pela velhota matriarca, que passa uma lição de moral e a faz voltar correndo para conseguir ver a queima de fogos de ano novo no colo do boy.

Com medo do fantasma do Natal futuro a visitar e revelar que ela continua encalhada, Gkay corre para os braços do nosso futuro internado e o infecta em um belíssimo beijo técnico que, finalmente, deixa o vírus livre para completar o seu ciclo natural e se proliferar em outro organismo.

Resultado: positivo

Um Natal Cheio de Graça é uma obra atemporal que, ao mostrar o reencontro de Gkay consigo mesma e quebrando o ciclo de se esquivar de seu próprio presente, nos traz uma grande reflexão de fim de ano, fazendo-nos colidir com nossas próprias escolhas e repensar sobre quem realmente somos e queremos ser.

Antes do derradeiro fim, alguns erros de gravação em clima de paz mundial são mostrados para espantar suspeitas de ranca rabo nos bastidores, mas, como sempre, o veredito fica a critério do espectador.

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