DESPERDÍCIO de TEMPO LIVRE

Lucas Liedke
/psicanaliedke
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4 min readJun 3, 2020

É comum escutarmos todo tipo de conselho sobre como aproveitar melhor a vida em meio a uma rotina corrida de hábitos tão enraizados:⁣⁣⁣
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— Saia da redes sociais e vá ver o mundo lá fora. Conecte-se com quem você ama. Leia um livro. Faça exercícios físicos. Aproveite para viajar. Conecte-se com a natureza. Faça algo que você nunca fez. E a lista não acaba…⁣⁣⁣
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O ócio já foi uma atividade que continha em si a sua própria finalidade: não fazer nada. Mas hoje, também pode ser vivido como um tempo livre de obrigações que esbarra na noção de preguiça; e a preguiça é o grande alvo de condenação de uma cultura trabalhista.⁣⁣⁣
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O ócio pelo ócio, enquanto um momento próprio de liberdade e reflexão, não é um lugar tão simples de ocupar. O ócio também vira dever e trabalho quando está exclusivamente vinculado (e preso) ao seu oposto: a noção de produtividade. É sobre fazer uma manutenção eficiente e performática do tempo livre, que não pode ser desperdiçado.⁣
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O relaxamento se torna utilitário para garantir uma boa retomada à rotina de trabalho. É como a falta de sono do insône que precisa conseguir dormir o quanto antes não só porque está cansado e merece o descanso, mas porque precisa estar disposto para trabalhar no dia seguinte. Fica difícil dormir assim.⁣⁣⁣
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Olgária Matos e Adauto Novaes, na série Mutações que faz um Elogio à Preguiça, identificam a negação do ócio pela sua transformação em neg-ócio. A culpa ou vergonha por não aproveitar todo o potencial de um período de férias não tem relação com uma suposta “qualidade do tempo ocioso”. O ócio é gratuito e pertence ao próprio sujeito e não às expectativas sociais e culturais, ainda que as indústrias do lazer e do turismo façam de tudo para garantir a lógica de consumo do nosso tempo livre.⁣⁣⁣
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Provisoriamente suspenso de ter que responder a demandas e compromissos externos, esse tempo é a passagem ideal para a subjetividade. Uma pausa para integrar aspectos de si mesmo e até renovar uma condição criativa perante a vida. E você nem precisa fazer nada. ⁣⁣⁣

O TEMPO LIVRE NA QUARENTENA

5 episódios seguidos de uma série. 9 horas de videogame. 4 horas no Instagram. Tudo bem, ninguém vive só de realidade, ainda mais diante de um Real tão difícil de enfrentar e que estamos até desejando que passe logo.⁣

Para esse tipo de uso e abuso do tempo livre, podemos pensar na força da pulsão de morte. Uma pulsão capaz de desafiar a percepção do tempo com repetições contínuas e compulsivas que nos fazem perder a noção dos minutos, horas e dias. É claro que convém aqui um grau de condenação (culpa e vergonha) por experimentarmos um tempo “tão morto” durante tanto tempo.⁣

Segundo o filósofo Bergson, essas vivências automáticas (em puro transe) é um tempo morto porque elas não produzem qualquer modificação duradoura no psiquismo. Estamos indo de nenhum lugar a lugar algum. E não só perdendo tempo, mas perdendo tempo livre.⁣

Isso nos põe a refletir… Afinal, como podemos preencher o tempo livre? É preciso preenchê-lo para aproveitá-lo? De quanto tempo estamos falando?⁣

Alguns “tempos livres” podem ser mais nocivos, excessivos e “mal-aproveitados” do que outros, mas vale aqui um cuidado: o imperativo contemporâneo diz que tudo deve ser aproveitado ao máximo, inclusive o nosso tempo livre.

A psicanalista Maria Rita Kehl faz a crítica de que até mesmo o pouco tempo ocioso que temos hoje parece que precisa ser preenchido com alguma atividade interessante — o que o torna, do ponto de vista do funcionamento psíquico, um tempo livre idêntico ao do trabalho. ⁣

A suposta falta de tempo para o devaneio exclui um tempo vazio a ser preenchido pela fantasia. Não há mais tempo para o abandono da mente à lenta passagem das horas, o que pode fazer com que a experiência do tempo de lazer seja tão cansativa e vazia quanto a do tempo de produção.

Essas são questões que nos ajudam a diferenciar a subjetividade das nossas vivências de tempo livre — e quem sabe assim, conseguimos perceber melhor até onde esse tempo contribui para o alívio da elaboração simbólica e até onde é apenas uma fuga para tentarmos colocar a vida em pause… enquanto o tempo nos mata.

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Lucas Liedke
/psicanaliedke

Psicanalista e Pesquisador de Cultura e Comportamento