POLARIZAÇÃO da QUARENTENA

Lucas Liedke
/psicanaliedke
Published in
3 min readJun 3, 2020
@tinycactus

A quarentena vem acirrando discussões a respeito de como podemos ou devemos passar por essa experiência:⁣

— tem a competição de quem está sofrendo mais;⁣

— tem a competição de quem está passando melhor por esse momento;⁣

— e tem ainda a competição entre esses dois grupos distintos: os que estão atormentados com essa privação e os que estão conseguindo tirar algum proveito da situação.⁣

Essa é mais uma onda de polarizações para darmos conta. Enquanto alguns só conseguem enxergar e compartilhar a miséria em tudo o que está acontecendo em suas vidas, outros estão conseguindo tirar algum tipo de benefício dessa nova condição. Este segundo grupo tem aproveitado também para exibir as suas conquistas com orgulho ou como inspiração para os outros — o que também pode se tornar bastante cansativo de acompanhar principalmente se você faz parte do grupo que não está lidando bem com a nova realidade.⁣

Nessa hora, convém sairmos um pouco do jogo de espelhos das redes sociais, onde somos convocados a mensurar o narcisismo do outro com base em conteúdos muito bem selecionados. A vida é muito maior do que os stories de influenciadores que estão nos mal-influenciando. A vida é muito maior do que o instagram, até mesmo quando não podemos sair de casa.⁣

A clínica tem trazido histórias nítidas de ambos os lados nessa discussão. Crises reais ou imaginárias, crises de sentido, retornos a manias e compulsões. Mas também histórias transformadoras de pessoas que estão finalmente (e miraculosamente) fazendo mudanças muito positivas na sua vida. Sim, se estressando menos no trabalho. Sim, cozinhando mais e fazendo dieta, se dedicando a exercício físicos, estudos, meditação e por aí vai. São casos de pessoas que estão sentindo-se razoavelmente bem ou até melhor do que antes em muitos aspectos.⁣

Não, ninguém está salvando o mundo compartilhando as suas conquistas pessoais. Mas ninguém também está salvando o mundo cultivando e compartilhando suas frustrações e capitalizando com o sofrimento próprio e alheio.⁣

Em geral, e principalmente em quadros obsessivos, o sujeito neurótico tende a acreditar que pode realizar um grande feito sozinho se ele simplesmente se sacrificar o suficiente, se ele sofrer mais do que todos os outros. Essa é uma onipotência delirante e masoquista. E aí entramos em um buraco complicado de sair, bem pior do que a nossa casa.

Estamos criticando tanto a pressão por produtividade, pelas dicas que ajudam a hackear a vida e a quarentena, que agora o exagero também foi para o outro lado. A teoria kleiniana defende que quando não temos aquilo que desejamos, tentamos destruir isso no outro. É o recalque/inveja nos convidando a desvalorizar e ridicularizar o que o outro tem ou é — só para ver se perdemos o interesse.

Merecemos mais empatia nessa hora e não o julgamento ou a invalidação do que estamos sentindo, seja tristeza ou alegria, vergonha ou orgulho. Cada um está tendo a quarentena que consegue, e vale a pena estarmos atentos à forma como esses recortes das histórias dos outros estão nos afetando.

Convém lembrar também que sempre haverá dias melhores e piores para todo mundo. Por isso, é importante conversar e escutar as pessoas para além dos seus posts, e inclusive reconhecer quando há neles um pedido disfarçado de ajuda, até porque nada é apenas o que parece.

--

--

Lucas Liedke
/psicanaliedke

Psicanalista e Pesquisador de Cultura e Comportamento