Quanto MEDO a gente aguenta?

Lucas Liedke
/psicanaliedke
Published in
4 min readJun 3, 2020

O medo é um afeto importante que nos localiza na relação com o mundo e com o outro. O medo nos protege do perigo, mas também nos paralisa diante de um obstáculo. É normal que tenhamos medo de quem tem mais poder que nós. Tememos a represália. Tememos também o abandono, ou seja, perder o amor de quem amamos.
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Pro bem ou pro mal, agimos com (ou por) medo — e não cabe julgarmos que isso está errado. Até porque, como defende a psicanálise, por trás do medo, há sempre um desejo.
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A ideologia “viva sem medo” é um discurso ingênuo e também tirano. Uma boa dose de medo pode fazer muito bem. Mas quanto?
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Há medos e medos. O medo do desconhecido limita o nosso crescimento e expansão pessoal. A cultura do medo alimenta nossas fobias sociais. Políticas de segurança e cerceamento incitam ainda mais terror. Notícias de violência no cotidiano normatizam a impunidade com crimes de ódio e o avanço da cultura da intolerância. É o medo do encontro com o diferente. O medo de furar a bolha.
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E há também o medo de nós mesmos, e esse é outro buraco. Medo do autoconhecimento. Medo do próprio desejo. Medo do próprio ódio. Medo do nosso potencial e até do nosso sucesso. Medo de ser feliz. Medo do futuro. Medo do final. E no final, medo da morte.
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Se estar vivo vai dar medo, talvez a gente possa entrar em contato com o medo não para tentar destruí-lo, mas para recebê-lo e analisá-lo. Sem tanto medo do medo.

⁣Independente de ameaças reais ou imaginárias, há muitos anos vivemos em uma cultura global do medo, fundada em políticas de cerceamento e em uma epidemia de informações que nos faz agir por medo, com base no medo.⁣

O medo nos ajuda a ficarmos alertas e preparados. Pode ser o melhor estímulo para uma mudança de comportamento. Mas dependendo de como esse medo chega, pode também ser o gatilho para o pessimismo e a paranóia, e se torna um problema tão grande quanto qualquer outra ameaça. ⁣

Se o pânico é uma angústia inexplicável e sem sentido, parece importante agora não perdermos a cabeça e não nos distanciarmos do real sentido do medo que estamos atravessando. O desafio é falar sobre o medo, sem criar pânico.⁣

O Coronavírus nos provoca medo em muitas nuances. O medo de se contaminar. O medo de já estar contaminado. O medo de contaminar os outros. O medo de confundir os sintomas. O medo de estar exagerando no próprio medo. O medo de não estar pensando no coletivo. O medo de não fazer a quarentena como poderia ou deveria. O medo de fazer a quarentena e se deparar com a solidão. O medo de ser esquecido, ser percebido como inútil ou dispensável pela sociedade. O medo de que alguns recursos vão se esgotar, enquanto outros vão sobrar, a ponto de levar muitos negócios à falência. O medo da queda na economia e a crise do desemprego. O medo de estar contribuindo para algum tipo de colapso. O medo de enfrentar o seguinte fato: nada vai ser como era antes da pandemia chegar.⁣

O medo tem um caráter contagioso e, diante do medo do outro, parece que não há muita saída. Tendemos a introjetá-lo e absorvê-lo de forma até mesmo irracional, ou a nos protegermos em completa negação como quem menospreza o medo do outro e diz: “que medo idiota…”⁣

Um terapeuta faria muito bem se conseguisse, ao final do dia, não ter medo de investigar todos os medos de seus pacientes. Mas existe sempre a probabilidade de que esses medos também possam ser assustadores para o próprio terapeuta.⁣

Escutar e acolher uma pessoa que está nomeando e descrevendo o seu próprio medo é um ato de coragem. Afinal, é medo do quê? Onde que está pegando? Essa investigação pode fazer um sintoma fóbico diminuir ou se deslocar. Pode inclusive nos ajudar a dominar melhor a ansiedade e a influência negativa que geramos uns nos outros quando estamos sofrendo alarmados pelos nossos medos.

O distanciamento social não pode ser um distanciamento absoluto. A conversa pode passar por escutar e reconhecer os seus próprios medos e também os medos dos outros. Falar e compartilhar seus medos sem medo, mas com alguma responsabilidade, e em nenhuma medida diminuir ou deslegitimar o medo alheio.

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Lucas Liedke
/psicanaliedke

Psicanalista e Pesquisador de Cultura e Comportamento