SONO em SURTO

Lucas Liedke
/psicanaliedke
Published in
5 min readJun 3, 2020

A INSÔNIA E O CONFLITO OBSESSIVO
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A insônia é um sintoma causado por inúmeros motivos, mas principalmente pela própria angústia de não estar conseguindo dormir. É um mal que atinge cerca de 73 milhões de brasileiros (ABS), sendo que 44% da população mundial afirma que o seu sono piorou nos últimos 5 anos (KJT group).
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Em sintonia com o aumento generalizado dos níveis de ansiedade, a insônia é resultado de um estado de estresse e alerta que deixa o sujeito hipersensível a qualquer motivo que possa atrapalhar o seu sono.
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Essa excitação mental é povoada por pensamentos, palavras, imagens, memórias, medos, tensões e expectativas que entram em frequência repetitiva. Uma estimulação que perturba, ao mesmo tempo que entretém quem tenta dormir, gerando a sensação física e mental de que há algo mais importante a fazer naquele momento do que pegar no sono. E talvez haja. 🤷🏻‍♂️
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A psicanálise considera um modo compulsivo no preâmbulo da insônia. A propensão ao controle, típica da neurose obsessiva, tende a manter o sujeito atento à sua atividade mental em uma vigilância que impede qualquer relaxamento.
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A patrulha da consciência exige o sono, e dessa forma, impede que o sono aconteça.
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Existe aí um gozo no ‘pensar sem parar’, e também uma boa dose de culpa por isso. O insone recusa o sono, ocupando-se mentalmente de coisas que não está interessado. Resiste em admitir que não quer dormir, ao mesmo tempo que se pune por não estar dormindo — e é bastante provável que também aja assim com relação a outros desejos em sua vida.
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O insone duvida do seu sono pelo próprio prazer da dúvida. Desafia a pulsão que o levaria a adormecer, e nessa disputa interna, ambos saem perdendo. Há uma dificuldade em assumir um desses lados e fazer alguma paz com isso.
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É sobre abrir mão de alguma coisa, nem que seja desapegar da noção de tempo. Por não conseguir renunciar a algumas horas de sono, ele perde quase todas.

A PERFORMANCE DO SONO

Quando o sono também entra na lógica do melhor desempenho, dormir torna-se “descansar bem para poder render melhor no dia seguinte”.

O sono é um prazer do qual o corpo e a mente podem e devem desfrutar. Mas o sono também pode ser experienciado como um imperativo em prol da eficiência e da produtividade. A contradição é que dormir é abandonar temporariamente o mundo da produção e do consumo. É sobre dar um tempo para a luta diária pela sobrevivência. Mas não dormir é ficar enfraquecido ou incapacitado para enfrentar as batalhas do dia seguinte.

A higiene do sono — a combinação de boas práticas como exercícios físicos, boa alimentação, reduzir o uso do celular, uso de medicamentos, práticas de meditação e mesmo a análise e outras terapias — pode ser a base para uma boa rotina de sono. Boa parte dessas dicas, no entanto, já fazem parte do repertório de quem sofre de insônia e não necessariamente esses recursos resolvem a questão. Nesse sentido, a higiene do sono pode também se tornar frustrante e opressiva. Dedicar-se a esses comportamentos sem obter os resultados esperados é um gerador de ainda mais ansiedade e, com isso,… mais insônia.

Cada sujeito tem seu ritmo e sua cronotipia, e não é uma tarefa simples aceitar seus momentos para adormecer e despertar ou o seu número ideal de horas de sono.

A busca pelo sono perfeito já tem nome de doença: orthosomnia. O fenômeno foi detectado em 2017 diante de um novo quadro de pacientes que fazem um controle tão obsessivo do seu sono através de aplicativos de monitoramento, que isso se tornou um novo agravador da ansiedade e, ironicamente, piorou a qualidade do sono de muitas pessoas.

Focar no controle de dados pode fazer mais mal do que bem. No fim do dia, é mais sobre escutar os sinais do próprio corpo e menos sobre fazer cálculos e comparações em busca da autossuperação. São os aspectos sensíveis e subjetivos do sono que hoje carecem de maior discussão e representação.

O VAZIO DO SONO
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Dormir é uma experiência de abandono da consciência. É um tempo em que nos deparamos com nosso próprio vazio e, por algumas horas, nos retiramos do mundo. É essencialmente uma questão de solitude: mesmo que estejamos ao lado de alguém, sempre dormimos sozinhos.
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Perder o sono pode estar relacionado, portanto, a uma dificuldade de retrair o investimento libidinal que estamos colocando nos outros. É não desligar os vínculos exernos e não conseguir voltar-se para si, como uma espécie de falta de intimidade consigo mesmo.
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Freud falava da insônia como um medo de sonhar. O receio de mergulhar em um universo de desejos que a consciência e o estado de vigília simplesmente não dão conta.
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Dormir é perder o controle do pensar e do sentir, mas existe hoje um olhar muito mais objetivo, racional e pragmático sobre a quantidade e a qualidade do nosso sono. O tema vem sendo amplamente iluminado pela neurociência e pela tecnologia, que hoje são vistas como as grandes salvadoras daqueles que sofrem para dormir.
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A psicanálise, no entanto, nos relembra que o reino dos sonos é de uma natureza muito mais subjetiva que os últimos medicamentos e aplicativos para monitorar o sono. Continua sendo a experiência de um tempo-lugar misterioso (bizarro como os sonhos), absolutamente sagrado (‘durma com Deus’) e de um campo semântico muito mais feminino e materno do que o funcionalismo da ciência. Afinal, a origem do sono está lá atrás no cuidado de uma mãe para fazer ninar o seu bebê.

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Lucas Liedke
/psicanaliedke

Psicanalista e Pesquisador de Cultura e Comportamento