Um caso de TRISTEZA em MASSA

Lucas Liedke
/psicanaliedke
Published in
4 min readJun 3, 2020

Fala-se muito em depressão hoje em dia. Segundo a OMS, o aumento do número de casos de depressão foi de 18% nos últimos 10 anos. As pesquisas mais recentes, em um novo contexto de pandemia, apontam para um crescimento ainda mais acentuado. A depressão é um quadro clínico, e a sua massificação é grave e alarmante.⁣

No mesmo campo semântico da depressão, existe a tristeza. A tristeza não é uma doença, mas um sentimento, a tradução consciente de um afeto inconsciente. Sendo assim, a sua existência e incidência na população é muito mais comum do que a depressão.⁣

No entanto, andamos falando muito mais de depressão do que de tristeza. Talvez porque a tristeza não seja uma patologia emergente. Não é tão atual? Ou talvez porque a depressão tenha um tratamento apropriado: os antidepressivos. Pode parecer paradoxal, mas a expansão do mercado de antidepressivos, apesar da sua inegável importância, não faz um grande serviço em ajudar a sociedade a lidar com a tristeza. ⁣

A depressão está na cultura de massa. É um termo que sai com facilidade da boca de pessoas bem-informadas. A depressão é responsável por gerar um tipo de alívio em muitos jovens que, diante da confirmação do seu diagnóstico, podem finalmente dizer: “ah, agora eu entendo a minha tristeza.”⁣

Sim, o avanço da depressão é crítico e preocupante. Não é raro encontrar casos graves de sujeitos depressivos que tentam se curar com a ajuda de tutoriais de respiração no YouTube ou posts terapêuticos no Instagram. Não é fácil. Ainda existem muitos estigmas com relação à saúde mental. Enquanto isso, na outra ponta da crise, tem aquele sujeito que, em uma fase incômoda de tristeza (e em função de seus recursos, hábitos e valores familiares) passa a fazer uso de antidepressivos para anestesiar a sua tristeza. Os dois casos são lamentáveis. A assertividade do diagnóstico de depressão nunca foi perfeita, mas atualmente parece ainda mais difícil acertar, até porque os padrões estão mudando rapidamente.⁣

Pouco falamos de tristeza, mas o momento atual é, inevitavelmente, de tristeza. As perdas que estamos vivendo, o luto e o confinamento, o caos político e social, os atos extremos de fascismo e racismo, a falta de esperança e perspectiva — tudo isso nos coloca em um estado que muitos vem denominando, na falta de palavra melhor, de depressão. Seria um momento de depressão em massa ou de tristeza em massa? Ou ambos?

O grande desafio é encontrarmos termos que nos ajudem a localizar o que estamos vivendo enquanto sujeitos e enquanto sociedade. Afinal, o nome que escolhemos para dar ao nosso mal-estar pode mudar radicalmente a forma como vamos atravessar e superar essa fase.

UM CASO DE DEPRESSÃO EM MASSA

A incidência de sintomas clínicos da depressão está mais comum nos dias de hoje? As pesquisas indicam que sim. Porém, os principais balizadores para a identificação de um quadro depressivo também se encontram com os seus padrões de “normalidade” bastante alterados. A experiência clínica revela que muitos sinais típicos da depressão se parecem com os novos hábitos e sentimentos vividos durante a quarentena.

Afinal, como avaliar atualmente um sentimento generalizado de impotência e inutilidade? Ou o baixo nível de energia que subitamente nos acomete em meio a um dia de trabalho (ou de desemprego)? Ou mesmo os possíveis pensamentos recorrentes a respeito da morte? Tem como não pensar em morte em 2020?

Quanto de sofrimento ou de incapacidade de trabalhar, dormir, se alimentar e se engajar em atividades prazerosas é esperado de nós nessa atual situação? Como lidar com as supostas 6 semanas estimadas para se “sair” de um evento traumático? Há quanto tempo estamos tristes? Ou seria deprimidos? Qual é o tempo ideal de um luto?

Com a pandemia da covid-19, critérios de diagnóstico que sempre foram bastante delicados e cheios de áreas cinzentas, parecem ainda mais problemáticos. Como qualquer manual que se propõe a entender o ser humano, o DSM-5 se debate com questões limítrofes de linguagem e com a subjetividade do sofrimento de cada sujeito. Ou seja, tudo só se resolve, com sorte, no caso a caso e na relação médico-paciente.

A maior dificuldade hoje está em perceber o que é exatamente circunstancial e até onde é recomendado suportar o circunstancial para que essa atual condição não se torne um novo normal, um normal do qual corremos o risco de não conseguirmos mais sair. Como continuar definindo e tratando a depressão nesse novo mundo? Como vamos categorizar, qualificar e quantificar esse sofrimento diante de uma mudança nos padrões de sofrimento?

Doenças são condições biológicas, mas o mal-estar é também um reflexo de circunstâncias sociais e culturais. É só olharmos para outras culturas ou outras épocas para perceber a pluralidade possível de sofrimentos. O ser humano já suportou situações piores, melhores ou simplesmente diferentes. Há sempre um processo de adaptação e um nível de tolerância a ser atingido e superado, assim como há também aqueles que simplesmente têm uma dificuldade radical de se adaptar a novas realidades.

As patologias mentais não são condições fixas. São dinâmicas e estão condicionadas a serem percebidas de acordo com uma média da população. Se quase todos estão deprimidos, isso significaria que quase ninguém está? Quando o diagnóstico parece ser aplicável a tantos, não é só o sistema médico que está defasado, mas sim o contexto social. Como disse o filósofo Krishnamurti, “não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”; e há muito tempo não ficávamos tão doentes. O momento pede para recalibrarmos as nossas exigências e expectativas do que é “estar bem” ou “ser feliz”, pois com certeza a coisas não são mais como eram.

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Lucas Liedke
/psicanaliedke

Psicanalista e Pesquisador de Cultura e Comportamento