A psicologia do caga-regras

Mariana Farinas
Psicologia mastigadinha
4 min readJul 6, 2018

Volta e meia, sem sermos requisitados, saimos dizendo aos outros o que fazer. Cheios de autoridade falamos, falamos e falamos para alguém que não veio a nós em busca de um manual de instruções.

Agir assim ocasionalmente é parte de ser humano (quem nunca?). Quando essa maneira de estar com os outros torna-se constitutiva da personalidade de alguém, aí temos o famoso caga-regras. Todo mundo conhece um : se a humanidade o ouvisse, estaríamos muito melhor. O país não estaria assim, o problema do encanamento na sua casa já estaria resolvido e você com certeza teria mais dinheiro e melhores relações.

Conhecedor dos assuntos mais diversos, de nutrição, passando por instalações elétricas e relacionamentos, o caga-regras resolveria quaquer problema seu muito melhor que você. Não importa a situação, ele sempre sabe o que você tem que fazer. Mas se realmente suas regras e instruções fossem tão eficazes, não se usaria um termo tão pejorativo para descrevê-lo. Dizer que a lista de regras e procedimentos que ele dá foram “cagados” expressa uma grande depreciação daquilo que está sendo oferecido.

Por Zé Luiz e Jackson Oliveira, publicado em The São Paulo Times

Parte do motivo desta depreciação é que a maneira de agir do caga-regras é invasiva. Há uma diferença entre criticar, palpitar, aconselhar, sugerir e cagar regras. O caga-regra é impositivo e se ressente quando seu tão valioso conhecimento e boa intenção são rejeitados. Esse ressentimento pode se expressar na forma de retaliações mais ou menos veladas, como uma posição supostamente compreensiva (“Não quis me ouvir, tudo bem. Resolva então seu problema sozinho”), como um julgamentos (“Essa pessoa é muito burra de não me ouvir”) ou como uma decisão declarada de se ausentar (“Então não falo mais nada”).

“A ignorância gera mais frequentemente confiança do que o conhecimento” — Charles Darwin

A superioridade ilusória do caga-regras tem explicação científica. Os psicólogos David Dunning o Justin Kruger verificaram que quanto menos conhecimento sobre um assunto, maior a tendência a acreditar que sabemos mais que os outros. Essa superioridade ilusória e a incapacidade de perceber nossa própria limitação é um fenômeno cognitivo que ficou conhecido como efeito Dunning–Kruger. O senso de autoridade do caga-regras, portanto, pode se dar por ele ter tão pouco conhecimento sobre o que diz que não é capaz nem de avaliar que conhece pouco. E essa perepotência pode ser reforçada se ele porventura tiver uma autoridade real em algum outro contexto, como um título adquirido, um cargo importante no trabalho ou uma posição de prestígio em sua família.

“Se você é incompetente, você não consegue saber que é incompetente… O conjunto de habilidades que você precisa para saber a resposta correta [para algo] é justamente o que você precisa para avaliar o que seria uma resposta correta.” — David Dunning

A capacidade de avaliarmos nosso próprio conhecimento é limitada. Existe aquilo que sabemos que sabemos, aquilo que sabemos que não sabemos, aquilo que não sabemos que sabemos e aquilo que não sabemos que não sabemos — talvez tenha ficado confuso, mas não encontro forma melhor de colocar. .O caga-regras esquece justamente do mais importante: que sempre há algo que não sabemos. Desta forma, não considera que os outros possam perceber algo que ele não percebe. Além das relações ficarem enrijecidas em um padrão em que o outro é sempre quem não sabe, as soluções dadas não ajudam. E não ajudam por que são soluções que não consideram pontos fundamentais da situação ou das necessidades e recursos daquela pessoa. Assim sendo, falar que as regras foram cagadas é uma forma de retaliação a uma postura que pode ser bem intencionada, mas que parte de uma posição presunçosa.

“Conhecimento real é saber a extensão da própria ignorância” — Confúcio

O caga-regras pode ser estar mais guiado por uma necessidade de reconhecimento do que por um real interesse no outro. O desejo de ser aquele que sabe, aquele que ajuda, aquele que faz a diferença é o que norteia a ação. Sem curiosidade em ouvir o outro para ter mais informações, não há como perceber as reais possibilidades e limites da ajuda que se pode dar. O caga-regra, no fim das contas, faz um “monólogo delirante” por uma “necessidade exasperada e exasperante de ouvir narcisisticamente apenas a si mesmo”(frases emprestadas da linguista Ivonne Bordelois, do livro A Palavra Ameaçada).

Quem age assim não percebe que está na realidade sendo desatento com os outros e se ressente por sua boa vontade e seu conhecimento serem recebidos com negativas e caras entediadas. O que está sendo recusado, porém, é o tipo de relação que ele, sem perceber, tenta estabelecer — ninguém quer ser tratado como um incapaz ou um ignorante. O mais irônico é que, no fim das contas, o caga-regras se torna incapaz de ajudar justamente porque ignora suas próprias limitações, ignora seu próprio comportamento e, acima de tudo, ignora a realidade daqueles a quem deseja ajudar.

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