Carcereiro afetivo e prisioneiro esperançoso

Mariana Farinas
Psicologia mastigadinha
5 min readJun 30, 2018

Esperar por um vínculo afetivo que nunca engata ou por uma nuance da relação que nunca se concretiza pode ser aprisionante. Promessas, explícitas ou implicitas, podem ser uma maneira de aprisionar.

Podemos esperar, alguma vez na vida, um sinal claro de que o outro viu, reconheceu ou quer algo que também querermos. “Nós vamos nos reaproximar, ela vai voltar”, “Um dia ela vai querer um compromisso sério”, “Ele vai falar as palavras que eu tanto espero”, “Ele vai finalmente entender o que eu quero dizer”, “Ele vai mudar”. O fim desejado da espera talvez venha…ou não.

A esperança é a virtude do escravo — Emil Cioran

Em alguns casos, o que se espera nunca chega e esperar torna-se a própria dinâmica da relação, numa espécie de encarceiramento afetivo. Quando é este o caso, forma-se uma triste dupla: um prisioneiro esperançoso e um carcereiro afetivo. Enquanto o pobre prisioneiro está subordinado à espera do sonhado desfecho, o carcereiro afetivo vive o conforto de ter alguém disponível para o que ele precisar: alguém para dar-lhe uma atenção especial, sexo, companhia, apoio, a sensação de ser bom e generoso ou o sentimento de ser importante na vida de alguém.

O prisioneiro está a disposição, atento a qualquer abertura maior do carcereiro afetivo. É como se o esperançoso vivesse guardado em uma caixinha, um quartinho, um baú e o carcereiro o tirassede lá ao precisar de algo dele. É o carcereiro que tem maior poder de decisão do quando, do como e do aonde, pois está menos disponível para a relação do que aquele a quem ele aprisiona. O prisioneiro esperançoso tem o alívio de ter sido tirado do seu baú para receber um pouco de atenção, mas a angústia pela iminente intuição de que em breve será guardado de volta e viver novamente sem saber quando poderá respirar a liberdade de ter seu amor de volta.

“Eu preciso dizer que te amo, te ganhar ou perder sem engano” — Marina Lima

Quando se tem esperança em um futuro positivo, fica-se mais caridoso. O prisioneiro olha o carcereiro afetivo com olhos generosos, sua compreensão poderia ser santificada: ele ou ela tem um motivo para fazer isso, está passando por um momento difícil ou teve um passado complicado. Os gestos do carcereiro podem também serem tomados por enigmas, tudo é digno de interpretação. O que será que ele ou ela quis dizer com isso? Porque disse isso e não aquilo outro? Procura-se, por entre as palavras, atitudes e procedimentos um significado oculto que será a chave para o momento em que o que é desejado finalmente irá se consumar.

Um outro motivo para a atitude compreensiva e caridosa com aquilo que não é merecido é o medo do que é desejado não se realizar. O prisioneiro fica passivo e anestesiado, não percebendo os gestos do carcereiro como bons ou ruins para si, como desejaveis ou indesejáveis. Ele vive a mercê do desejo alheio e perde a capacidade de reagir diante da indiferença ou manipulação de quem o aprisiona. Além do medo do que é desejado não se realizar, há um medo de não conseguir encontrar em outra pessoa ou em outro lugar aquilo que o carcereiro um dia irá lhe dar. Há, provavelmente, uma escassez de algo muito importante na vida do prisioneiro, que a dar crédito sem verificar se quem fez a promessa tem ou não nome sujo no mercado.

“O indivíduo temeroso se entrega facilmente a promessas de segurança que dão origem à sua utilização como instrumento de dominação. […] A esperança torna-se então instrumento de obediência” — Ivonne Bordelois

Nessa espécie de amor platônico — seja esse platonismo pela ausência da relação de fato ou de uma nuance imprescindível em uma relação já mais ou menos constituída — o prisioneiro vive em uma atenta busca de sinais. Mas nada se consuma, é só mais um alarme falso, outro desencanto, bola na trave. Ele pode variar entre amar a esperança, desejar que ela suma, querer matá-la com um tiro de escopeta ou chorar agradecido à seus pés. O esperançoso pode passar meses ou anos sem concretizar algo muito desejado e sem construir um caminho que possibilite a realização desse desejo em outro lugar.

O amor puro mandou dizer por e-mail
Ah!, desça do muro
que eu já tô cheio
Já cansei de você nesse lero-lero
essa velha letra de bolero
e só aturo agora o velhaco do Platão
com o tal
Kama-Sutra na mão
— Tom Zé

O carcereiro afetivo deixa a entender que irá em algum momento dar ao prisioneiro aquilo que ele anseia. Ele alimenta a expectativa com um quase aqui e um quase ali, com migalhas ou simulacros do que o prisioneiro quer. No fundo, o carcereiro sabe que não quer para si aquilo que o pobre esperançoso tanto deseja. Mas reconhecer e agir em acordo com essa própria falta de desejo exigiria que o carcereiro abrisse mão de tudo o que ele obtém mantendo o outro prisioneiro.

Por perder algo muito importante sendo sincero, o carcereiro raramente será franco e abrirá a porta da liberdade para o prisioneiro. É o prisioneiro que precisa mudar para que venha a libertaçã. E esta mudança é o caminho duro, mas certo, de aceitar que aquilo que se deseja não virá daquela relação. Neste caminho a esperança morre de morte natural e toda intensidade que estava depositada nela começa a permear descobertas de valor próprio, de riquezas na própria vida e de como aquilo que parecia não existir mais em lugar nenhum está por toda parte. O prisioneiro recém liberto descobre que estava no tal baú antes mesmo do carcereiro chegar, que o carcereiro está preso a seus próprios infortúnios e que liberdade só chega pra quem a deseja.

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