Decapitação: uma imagem simbólica para quem se melindra com pensamentos alheios

Mariana Farinas
Psicologia mastigadinha
3 min readJul 1, 2018

Enquanto símbolo, a decapitação pode dizer muito sobre uma forma de desconsideração degradante nas relações humanas. Corte-lhe a cabeça!, grita a Rainha de Copas para qualquer um que a contraria.

São diversas as formas com as quais anulamos a existência dos outros, com as quais desconsideramos que outras pessoas tenham um mundo interno e uma identidade única. Matar, simbolicamente, pode ser uma imagem de desconsideração à existência de alguém (não a toa, algumas pessoas brincam de chamar algum ex caso amoroso que não têm em alta estima de “falecido”). Decapitar é uma forma de matar em que se viola a dignidade cindindo o “falecido”(ou em outras palavras, o desconsiderado) em duas peças: uma cabeça incapaz de governar e um corpo que se torna imbecilizado sem uma cabeça que o governe.

Decapitar, simbolicamente, é findar com a capacidade de alguém de devanear e uma garantia de que ela nunca mais irá emitir uma opinião. Aliás, nos Estados Unidos, existe a expressão “cabeça falante” (talking head) para se referir às pessoas que aparecem na TV, do pescoço para cima, dando sua opinião sobre algum assunto. Decapitada, a cabeça falante só é capaz de um blá, blá, blá que nunca colocará em pratica. Em certo sentido, a imagem da cabeça cindida de um corpo que pode realizar tarefas é a imagem de uma cabeça inútil.

A decapitação também pode ser uma imagem da anulação da identidade de um corpo, como se faz quando um algoz cobre com uma máscara negra a cabeça de um prisioneiro de guerra. O corpo então se torna algo para desfrute, quem sabe para ser usado para descontar algum impulso sádico, realizar algum trabalho bruto ou ser desfrutado sexualmente. Com a cabeça decapitada, não há identidade ou pensamentos com os quais se tem que lidar para em um desfrute. Desconsiderando a capacidade de pensar, pode-se transformar o outro em um bibelô, em uma boneca inflável, em um burro de carga ou o que a imaginação autoritária e revoltosa mandar. E sem uma cabeça que olha, indaga e responde, quem decapita os outros se livra daquele “olhar penetrante que pode deixar os outros impotentes” (Robert G. L. Waite), tal como Perseu se poupa do olhar da Medusa. Que dádiva ou que deseja plenos poderes não ter de lidar com nada que tenha se passado pelos pensamentos de outra pessoa. Decapitar, desconsiderar o rosto com seus olhares e expressões dos pensamentos é então vencer aquilo que castra a onipotência do desejo. É reafirmar a própria soberania diante do mundo: “eu não lido com o que os outros pensam, eles é que lidam com o que eu penso”.

Essencialmente, a imagem da decapitação talvez fale de uma relação em que uma das partes não é reconhecida como tendo o direito de pensar a sua própria maneira. A parte decapitada deixa de ser considerada como uma criatura que age com uma direção que tem seu próprio sentido. Quem decapita, por outro lado, mantém seu direito a pensar como lhe aprouver e a seguir sua próprios direção. Porém o faz com onipotência, aniquilando o outro para não ter que se modificar pela presença de um pensar diferente. E, como qualquer um que pretende a soberania dos próprios desejos, decapitar também não deixa de ser uma excelente maneira de mostrar aos outros o que pode acontecer quando se tem “certas ideias”.

– para saber mais sobre decapitação, consulte “Thirteen Ways of Looking at a Severed Head” (Treze Maneiras de Olhar uma Cabeça Decapitada), em “I Must Not Think Bad Thoughts”, de Mark Dery

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