A consideração tem origem nas estrelas

Mariana Farinas
Psicologia mastigadinha
4 min readJun 27, 2018

Consideração e sideral vem da mesma palavra em latim, sidus, que significa astro, estrela.

No início dos tempos, quando se planejava uma rota de navegação era necessário consultar as estrelas. Os satélites que se comunicavam com os pequenos aparelhos que carregamos no bolso não existiam. Para saber por onde ir, era preciso consultar as constelações no céu e saber suas posições, sempre mutantes ao longo do ano. Um enorme aclive nos obrigava a desviar a rota na terra, uma correnteza ou um vento nos puxava para cá e para lá no mar. Zigue-zaguevamos lutando contra os desvios num constante reajuste de rota orientado pelas estrelas. Os astros iam se tornando velhos conhecidos ao longo dos anos, em conversas, silêncios e devaneios debaixo da abóboda estrelada.

Consideração hoje significa o respeito ou estima que se demonstra por algo ou alguém

Con-sider-ação era a ação daquele que estava com as estrelas (sidus, em latim). Era elas o ponto de referência para definir os azimutes (“rumo a seguir”). E aquele que não estivesse com as estrelas, pelo infortúnio de uma noite nublada, só podia se orientar por aquilo que estivesse no alcance curto da luz de sua lamparina — uma referência boa para se achar algo em um cômodo, mas insuficiente para quem quer chegar longe. A intimidade com as estrelas e a presença delas, portanto, podia fazer a diferença entre chegar ao destino ou se perder, chegar em tempo ou tarde demais.

Consideração era observar as estrelas para saber como agir em consequência do destino ao qual se pretende chegar. Mas hoje, não conhecemos mais as estrelas. É possivel ir ao destino a bordo de uma máquina, consultando pequenos retângulos que reatualizam azimutes pra fugirmos do transito, que nada mais é que um caminho lentos pelo excesso de outras máquinas. Neste outro contexto, considerar se a bateria do retangulo tem carga suficiente é o que pode fazer a diferença entre chegar em tempo ou tarde demais. É um tempo bem distante daquele em que se usava a palavra sidus para falar das estrelas.

Nut, deusa mãe egípcia, que era o próprio céu estrelado. De noite, os egípcios talvez olhassem, para o céu e se lembravam filhos do mundo.

Ao longo dos séculos, con-sider-ação ganhou outro sentido. Hoje significa, entre outras coisas, o respeito ou estima que se demonstra por algo ou alguém. É também a atitude de interessar-se pelos assuntos de alguém, ser complacente, atencioso. Mas mantém com a palavra antiga o sentido de orientar-se por algo ao qual que deve ser observado com paciência e minúcia. Agir com consideração por alguém, é orientar a rota de cada gesto consultando uma referência solene como as estrelas e que, como elas, nos liga a um passado insondável: o fundamentalmente humano.

E nossa primeira humanidade é a condição de filho. Filho da terra, de Deus, do universo ou de alguém que pode se chamar Dona Maria da Silva. Nem todos somos pais, mas filhos, sim. E como tais, todos nós temos a necessidade atávica de sermos reconhecidos em nossas fraquezas por um outro que será generoso para conosco. De sermos reconhecidos por um outro, que se sabe filho como nós, e que nos acuda da ausência de sentido — afinal, o que vive um recém chegado ao mundo, berrando sozinho e desamparado, senão o pavor de que tudo perca o sentido e deixe de existir?

Consideração: orientar a rota de cada gesto pelo que é fundamentalmente humano; agir levando minuciosamente em conta cada manifestação de si mesmo e dos outros como uma manifestação da humanidade; agir lembrando que um humano é um filho que merece generosidade com seus tantos defeitos, culpas e dodóis.

– esse texto se pretende uma apliação livre do sentido da palavra consideração a partir de sua etimologia.

– a astronomia e astrologia se separaram de um mesma ciência antiga. Guiar-se pelas estrelas também poderia significar saber que um padrão no céu indica algo que está por vir, um destino inevitável ao qual inevitavelmente chegaremos. Con-sider-ar seria então levar em conta as estrelas para chegar ao seu destino o melhor preparado possível.

– pra quem quer saber mais, consulte o Dicionário Houaiss ou o livro Etimologia das Paixões, de Ivonne Bordelois

– em muitos lugares do mundo as estrelas ainda orientam a rota

--

--