Tirania amorosa: os homens que matam as mulheres em 1001 Noites e Barba-azul

Mariana Farinas
Psicologia mastigadinha
3 min readJun 30, 2018

Um sultão descobre-se traído pela mulher e conclui que todas as mulheres traem. A partir daí, passa a casar-se com um mulher todas as noites e manda seu vizir matá-la na manhã seguinte.

Shahrazad, mesmo sabendo disso casa-se com ele. Ela, que confia nas próprias habilidades de encantar com as histórias que tece, entrega-se à um homem ressentido, que aniquila as mulheres com as quais se relaciona. Shahrazad passa noite após noite com esse homem, contanto histórias sob terror constante. Qualquer desagrado, qualquer gesto mal calculado, qualquer palavra fora de lugar acabaria em uma fria desconsideração por sua vida. A vida de Shahrazad, portanto, tinha valor apenas enquanto servia a satisfação das fomes da alma e do sexo do homem ao qual ela escolheu se entregar. Revelar outros aspectos de si mesma, como que dizendo “hoje não quero lhe satisfazer as fomes, quem precisa das palavras certas sou eu” tem como preço seu aniquilamento diante dele.

Já a heroína de Barba Azul não sabe que seu futuro marido é um assassino que matou todas as suas antigas esposas. Mas suas irmãs mais velhas e experientes o temiam e se assustavam com o azul de sua barba. E apesar dos avisos de suas irmãs, a jovem se convence que talvez ele não era tão ruim e que talvez sua barba não fosse assim tão azul. Após casada, ela é proibida por ele de entrar num dos cômodos da casa. Mas sua curiosidade a leva a entrar e descobrir os corpos sem vida das mulheres que vieram antes dela — e a perceber que ela seria a próxima. Na relação com ele, ela poderia fazer o que quisesse, menos saber quem ele era no fundo. Poderia ter o que quisesse com ele, menos uma intimidade real.

Estes homens são, cada um à sua maneira, indiferentes à humanidade e a singularidade de uma mulher e, portanto, não permitem a existência de uma real intimidade. Eles não incentivam a expressão e o florescimento daquilo que existe para além do que serve á satisfação direta de suas próprias fomes . E além de não incentivar, recebem o que sai fora do desejado um “então você não existe para mim”. Matar alguém significa negar-lhe a existencia. O assassino de mulheres pode ser então uma imagem para um homem que nega a existência do mundo interno de uma mulher, não levando em consideração a realidade dela. Experimentar a morte pode ser também experimentar a impossibilidade de crescer ou de respirar, de expelir o que é velho e inspirar o que é novo.

O sultão das 1001 Noites e Barba-azul negam a alma dessas mulheres, permanecendo emocionalmente distante e considerando-as apenas do ponto de vista em que elas podem se constituir como entretenimento aos sentidos ou ao espírito. Mas há uma diferença fundamental entre essas duas histórias. Na história do Barba-azul, este marido vilão parte pra matar a esposa assim que percebe que ela descobriu o seu segredo. Porém, ela clama por ajuda e Barba-azul é assassinado, deixando de existir para ela. Talvez Shahrazad pudesse aprender algo com esta heroína e ir contar suas maravilhosas histórias para o mundo, ao invés de no quarto fechado de um ressentido.

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